sexta-feira, 30 de abril de 2010

O SR ADÉRITO, ENGRAXADOR - COMO SE FORA UM CONTO

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Já lá vão muitos anos, mas as lembranças fluíam com rapidez.

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Sentado à mesa de um café da baixa Portuense, olhei os meus sapatos e pensei em quanto me saberia bem que aquele café tivesse um engraxador. Apeteceu-me ter os sapatos limpos, escovados e a brilhar.

Se ao menos ainda houvesse engraxadores! Já há muito que os não via. Os últimos estavam naquela entrada da rua Sampaio Bruno, quase em frente à Casa da Sorte. Havia também um ou dois, que paravam na Praça da Liberdade, quase na esquina da rua da ‘engraxadoria’.

Antigamente, não havia café que não tivesse um, e havia trabalho para todos. Todo o homem que se prezasse gostava de ter os sapatos a brilhar. Hoje são raros, os engraxadores, já que sapatos a brilhar ainda os vai havendo, e homens que se prezem ainda há um ou outro.

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O sr Adérito era franzino, pequeno, de pele muito branca e sem barba. Homem dos seus quase cinquenta anos, não parecia ter mais de trinta.

Eu era ainda um chavalo. Nem vinte anos tinha, e na altura, só se era homem depois da maioridade, e essa só vinha aos vinte e um. Hoje não é assim. Os putos, ainda mal desmamados e recentemente saídos de debaixo das saias das mamãs, na sua maioria dependentes inteiramente dos progenitores, chamam-se de pleno direito, homens, e já podem votar e influenciar a vida de um país.

Loiro, de melena lambida e cabelo muito fino, o sr Adérito tinha o tique de, movendo rapidamente cabeça, atirar com a melena para o cimo da cabeça, tirando-a da testa e da frente dos olhos. Tinha sempre um cigarrito ao canto da boca, muitas das vezes, apagado, e ia assobiando fados no meio das histórias que nos contava.

Era homem de muitos conhecimentos da vida, mas de poucos estudos. Tinha tirado a quarta classe, com alguma dificuldade por ser o filho mais velho e haver necessidade de ajudar nos trabalhos da casa e do quintal, e depois, findos esses estudos, tinha ido trabalhar para os campos do Senhor D. António, lá na terra. Aos quatorze anos, fugira para o Porto, e por cá se mantivera desde então.

Até aos dezoito, trabalhara em toda e qualquer coisa, boa e má, e nessa altura fizera-se engraxador por influência de um grande amigo, conquanto recente. Pouco tempo antes tinha ido dar com os costados no chilindró por via de um assalto a um café, mal calculado e mal executado, e lá conheceu o Neca engraxador, internado no mesmo edifício por motivos idênticos, que nas horas vagas, e por amizade, lhe ensinou a arte. Quando saiu da pildra, abraçou esse ofício.

No café onde o sr Adérito trabalhava, um café grande na rua de Ceuta, parávamos nós, estudantes, para lanchar, jogar bilhar na cave, e de longe a longe, estudar.

O homem, com um sorriso constante na face, era bom conversador, e eu bom ouvinte.

Aos poucos fiquei a saber o que era possível saber da vida dele. Tinha seis filhos, um de cada mulher, e vivia sozinho num quarto de uma pensão de quinta categoria, com vistas de rua, na rua Formosa, com serventia de uma cozinha e de um quarto de banho que ficavam ao fundo do corredor do seu andar, o terceiro. Cantava fado duas ou três noites por semana, a troco de um magro jantar e de uns copitos de vinho.

Dos filhos pouco sabia, a não ser do mais novo, e das respectivas mães, nada, a não ser da última. Andava no Tribunal, com ela, por causa de uma pensão de alimentos para o filho, que ele não podia dar. Não tinha, dizia. O pouco que ganhava mal dava para pagar o quarto e para comer. E ele que comia tão pouco. Não conseguia engolir e o estômago tinha minguado. Ficava enfartado logo que bebia um copo. E como bebia outro e mais outro, a comida não cabia. Devia ser por isso, confidenciou-me um dia, que tinha apanhado aquela doença dos pulmões, que o não largava e que o obrigava a tossir constantemente. O cigarro também não ajudava. Eram dois macitos por dia. Dos pequenos, baratitos, mata-ratos (nome que na gíria se dava na altura). Kentuchi, era o nome da marca. Tinha de ser desses baratos, que o dinheiro não chegava para mais. Mas o Juiz não estivera pelos ajustes e mandara-o pagar uma fortuna. Quase trinta escudos cada mês. E ele tinha lá os trinta escudos para pagar. Trinta escudos era uma fortuna. Pensavam que ele era rico ou quê? Cada engraxadela custava menos de um escudo, e não engraxava mais de dez pares de sapatos por dia, nos dias bons, dizia. A média andava pelos cinco ou oito. Daí tinha ainda de tirar para comer e para o quarto e para os cigarritos, que o café e um ou dois bagacitos, ele tomava de borla. Tinha também de comprar a graxa e as tintas e os panos estavam a ficar rotos, e as escovas sem pêlos. Não podia. Não dava para tudo. Mais valia ficar com o puto com ele. Era mais barato. E ele que até gostava muito do miúdo, era parecido com ele. E tendo vindo tarde, era quase como um neto. Mas a mãe não queria, precisava do dinheiro que sobrasse para as coisas dela, que o que ganhava a lavar escadas não chegava. Só se fosse roubar… falava com o som a diminuir, terminando quase a ciciar. Mas que não queria, já tinha passado por isso e não queria voltar. E, dizia meio a brincar, nem tinha saúde para isso.

O dilema do sr Adérito era enorme, e nós, amigos dele, ficávamos tristes com o seu infortúnio. Resolvemos então dar-lhe dinheiro, pouco, só para ele poder pagar a pensão do filho. Entre todos arranjávamos vinte e cinco escudos todos os meses. E assim, durante mais de dois anos, em todos os meses, excepto no Agosto, lá lhe entregávamos o dinheiro, sempre até ao dia oito, que era quando ele tinha de o entregar. Como se fosse uma renda de casa.

Um dia, ainda o Inverno era uma criança, não apareceu. Às vezes acontecia, desaparecia durante dois dias ou três. Eram os pulmões, ou o estômago ou então outra mazela qualquer. Mas não voltou desta vez, e ninguém sabia o que lhe teria acontecido. Não havia notícias. Teria morrido? Esperava-se que não, coitado do homem. O tempo passou, semanas, um mês, dois, três, cinco meses, e aos poucos deixamos de falar diariamente dele. Só um dia por outro. No café havia agora um outro engraxador. A lembrança do nosso amigo, impedia-nos de gostar muito deste novo. Nem sequer era simpático.

Acabou o ano lectivo e começou outro. E do sr Adérito, nada.

Chegou Dezembro e o Natal contagiava toda a gente. Toda a gente andava com uma alegria renovada. Faltavam poucos dias para o dia vinte e cinco.

Estava o meu grupo a tomar café logo depois do almoço, numa sexta-feira com sol, quando uma sombra parou à porta de vaivém. Disse bem, uma sombra, não era mais que isso. A sombra do sr Adérito, e ele na ponta dela, na soleira. Especado, olhando para dentro do café. Estava mais magro, muito mais. As roupas, de melhor aspecto do que as que habitualmente usava, pareciam penduradas num cabide. A cara ainda mais branca, os lábios sem cor.

Já tinha passado quase um ano. Tinha chegado a nossa prenda de Natal. Sendo o Natal quando um homem quiser, também o Natal pode ser em Dezembro, como naquele ano.

Com um sorriso nos lábios dirigiu-se a nós depois dos cumprimentos da praxe aos ex-colegas do café. E falou, e falou, e falou. Que tinha estado internado, que tinha sido uma urgência, que nem tinha tido tempo de avisar fosse quem fosse, que tinha passado um mau bocado, dos pulmões pois claro, que o mudaram de sanatório para outro longe do Porto e que quando saiu, já com a saúde menos abalada, por lá ficou, numa terra vizinha, a trabalhar de engraxador e a fazer uns biscates. Que já estava melhorzinho, mas que tinha de ficar lá pelas montanhas, que o ar era bom e lhe fazia bem. Que tinha vindo ao Porto por nossa causa. Vinha devolver o dinheiro. Ganhava bem lá pela vila onde estava. Vivia com uma senhora que o ajudava bastante, e tinha de devolver o que lhe tínhamos emprestado. E puxou do dinheiro para nos dar. vinte e cinco escudos por mês vezes tantos meses, muitos. Queria pagar tudo. Que tinha de ser. Não ficava de bem com ele mesmo se assim não fosse. Qualquer dia morria e não quereria ficar com aquela dívida por liquidar.

Não era emprestado, tinha sido dado, dissemos, mas nada o conseguiu demover, e tivemos de aceitar o dinheiro.

Ao fim de duas, três horas, nem sei ao certo, tão curto me pareceu o tempo, um carro veio buscá-lo, com uma senhora ao volante. Parou à porta, com o motor a trabalhar, e lá foi ele embora, para não mais o vermos, com um sorriso nos lábios, feliz por ter cumprido o que entendia por correcto.

E nós aprendemos muito, com mais esta lição de vida, de decência e de honestidade, que nos ajudou na nossa formação como homens.

Tempos depois, houve uma revolução, e os homens como este entraram em vias de extinção.

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Passaram já tantos anos que suponho que o sr Adérito já tenha morrido, por certo que sim, por causa da doença e tudo, mas na minha memória continua ali, a engraxar uns sapatos a seguir a outros, sempre bem disposto, assobiando, contando histórias, no café da rua de Ceuta.

Que pena já não se encontrarem por aí, com facilidade, homens assim!

Não sei nem sequer imagino quem possam ser os filhos do sr Adérito. Como não sei o seu nome de família e não há a quem perguntar já que os donos do café são agora outros, nada poderei fazer, mas imagino como seria bom que eles pudessem saber desta história do pai deles.

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quinta-feira, 29 de abril de 2010

CULPADOS! - QUEM?, OS GREGOS!

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RAIOS PARTAM OS GREGOS
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Estou cada vez mais em sintonia com o nosso governo e com alguma da nossa oposição. A nossa oposição não se ‘oposiciona’ e o nosso governo não nos governa.

E a culpa de quem é? DOS GREGOS!

Não fossem eles, e nada do que está a acontecer aconteceria. Os gajos que os governam não sabem governar, embora imagine eu, que à laia do que aqui acontece, se governem bem.

Depois, por causa do mau desempenho desses senhores, lá vamos nós por arrasto, e até parece que os nossos vizinhos também seguem o mesmo caminho.

É uma vergonha o que está a acontecer. Por causa dos gregos, já nós nos andamos a ver como eles, e o resto do mundo também.

Andamos com greves todos os dias, e a culpa de quem é? Dos Gregos!

A nossa economia anda pelas ruas da amargura, e a culpa de quem é? Dos Gregos!

A nossa educação é muito baixa, e a culpa de quem é? Dos Gregos!

A confiança dos consumidores portugueses no governo e na economia é das mais baixas de sempre, e a culpa de quem é? Dos Gregos!

O Papa vem de visita a Portugal, e a culpa de quem é? Dos Gregos!

O José e o Pedro, vão a caminho de um Bloco Central com um PEC 2.0, e a culpa de quem é? Dos Gregos!

Não nos safamos destes gajos. O melhor é mudarmos de planeta ou, pelo menos, de Continente.

Raios partam os Gregos. Nunca mais lá vou.


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quarta-feira, 28 de abril de 2010

COMO ERAM DIFERENTES AS COISAS EM PORTUGAL

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VIA CORTA-FITAS
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« Memórias do Portugal respeitado*

Corria o ano da graça de 1962. A Embaixada de Portugal em Washington recebe pela mala diplomática um cheque de 3 milhões de dólares (em termos actuais algo parecido com € 50 milhões) com instruções para o encaminhar ao State Department para pagamento da primeira tranche do empréstimo feito pelos EUA a Portugal, ao abrigo do Plano Marshall. O embaixador incumbiu-me – ao tempo era eu primeiro secretário da Embaixada – dessa missão. Aberto o expediente, estabeleci contacto telefónico com a desk portuguesa, pedi para ser recebido e, solicitado, disse ao que ia. O colega americano ficou algo perturbado e, contra o costume, pediu tempo para responder.

Recebeu-me nessa tarde, no final do expediente. Disse-me que certamente havia um mal entendido da parte do governo português. Nada havia ficado estabelecido quanto ao pagamento do empréstimo e não seria aquele o momento adequado para criar precedentes ou estabelecer doutrina na matéria. Aconselhou a devolver o cheque a Lisboa, sugerindo que o mesmo fosse depositado numa conta a abrir para o efeito num Banco português, até que algo fosse decidido sobre o destino a dar a tal dinheiro. De qualquer maneira, o dinheiro ficaria em Portugal.

Não estava previsto o seu regresso aos EUA. Transmiti imediatamente esta posição a Lisboa, pensando que a notícia seria bem recebida, sobretudo num altura em que o Tesouro Português estava a braços com os custos da guerra em África. Pensei mal. A resposta veio imediata e chispava lume. Não posso garantir a esta distância a exactidão dos termos mas era algo do tipo: "Pague já e exija recibo".

Voltei à desk e comuniquei a posição de Lisboa. Lançada estava a confusão no Foggy Bottom: - não havia precedentes, nunca ninguém tinha pago empréstimos do Plano Marshall; muitos consideravam que empréstimo, no caso, era mera descrição; nem o State Department, nem qualquer outro órgão federal, estava autorizado a receber verbas provenientes de amortizações deste tipo.

O colega americano ainda balbuciou uma sugestão de alteração da posição de Lisboa mas fiz-lhe ver que não era alternativa a considerar. A decisão do governo português era irrevogável. Reuniram-se então os cérebros da task force que estabelecia as práticas a seguir em casos sem precedentes e concluíram que o Secretário de Estado - ao tempo Dean Rusk - teria que pedir autorização ao Congresso para receber o pagamento português. E assim foi feito. Quando o pedido chegou ao Congresso atingiu implicitamente as mesas dos correspondentes dos meios de comunicação e fez manchete nos principais jornais. "Portugal, o país mais pequeno da Europa, faz questão de pagar o empréstimo do Plano Marshall"; "Salazar não quer ficar a dever ao tio Sam" e outros títulos do mesmo teor anunciavam aos leitores americanos que na Europa havia um país – Portugal – que respeitava os seus compromissos.

Anos mais tarde conheci o Dr. Aureliano Felismino, Director-Geral perpétuo da Contabilidade Pública durante o salazarismo (e autor de umas famosas circulares conhecidas ao tempo por "Ordenações Felismínicas" as quais produziam mais efeito do que os decretos do governo). Aproveitei para lhe perguntar por que razão fizemos tanta questão de pagar o empréstimo que mais ninguém pagou. Respondeu-me empertigado: - "Um país pequeno só tem uma maneira de se fazer respeitar – é nada dever a quem quer que seja".

Lembrei-me desta gente e destas máximas quando há dias vi na televisão o nosso Presidente da República a ser enxovalhado pública e grosseiramente pelo seu congénere checo a propósito de dívidas acumuladas. Eu ainda me lembro de tais coisas, mas a grande maioria dos Portugueses de hoje nem esse consolo tem.

Estoril, 18 de Abril de 2010

* Por Luís Soares de Oliveira »

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domingo, 25 de abril de 2010

COMO SE FORA UM CONTO - 25 ABRIL DE 1974


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25 DE ABRIL DE 1974

O DIA DE TODAS AS PERDAS

Amanheceu cedo o dia de todas as perdas.

Amanheceu muito cedo o dia de alguns ganhos.

Dali para a frente, tudo foi feito às avessas.

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Naquele tempo, cumpria o serviço militar, e naquela manhã, estava «desenfiado». Desenfiado era o termo utilizado pelos magalas para definir quem, devendo estar de serviço dentro do quartel ou instituição militar, se encontrava fora, normalmente em casa, a dormir.

Ora na verdade, eu estava desenfiado. Dormia a bom dormir quando, pelas oito da manhã, uma tia me telefona a perguntar o que sabia eu da revolução. Nada, não sabia nada. Se calhar era outra intentona como a de Fevereiro, disse.

Sorte minha, depois de correr, aflito, para o quartel, ninguém tinha dado pela minha falta. Por lá, toda a gente estava preocupada em saber notícias certas do que tinha acontecido de noite. A expectativa era grande, e nada mais importava. Tudo se estaria a passar na capital, e nós seríamos os últimos a saber. No entanto, isso conseguíamos ver, a cadeia de comando estava a cair, desmoronava-se. As primeiras notícias eram contraditórias e ninguém mandava, ninguém obedecia. A «balda» era total e generalizada.

Os dias que se seguiram, serviram para que uns e outros se começassem a encontrar. Em poucos dias, o PREC modificou totalmente as pessoas. Poucos escaparam a essa transformação. Começaram a regressar os exilados e os fugitivos. Hora a hora, novas notícias, novas coisas, novos factos. Milhares de pessoas foram, por todo o País, espoliadas dos seus trabalhos e dos seus haveres. O primeiro 1º de Maio, foi, para a maioria de nós, uma festa provocada por um feriado que nunca tínhamos tido. Ninguém sabia ao certo as implicações políticas desse dia, apesar da tentativa de politização de alguns activistas. Pedaço daqui, pedaço dali, muitos dos meus «amigos» descobriram que tinham sido prejudicados, se não mesmo amarfanhados, por quarenta e oito anos de fascismo. O sofrimento por que tinham passado, diziam, era indescritível. Chegava a meter dó tanta crueldade sofrida. Não podiam falar alto e na rua contra os governantes. Não se podiam manifestar publicamente. Não podiam ofender os superiores ou faltar ao respeito aos mais velhos, fossem eles quem fossem. Para sair do País tinham de pedir autorização. Eram obrigados a responsabilizar-se por todos os actos que cometiam, mesmo os mais comezinhos. Os estudos até cursos superiores, não eram para todos. Não se encontravam nas livrarias livros de cariz político de esquerda. Não havia Coca-Cola, não se encontravam livros nem filmes pornográficos, e um ou outro, sabiam de um amigo de um amigo que tinha sido preso por motivos que nenhum deles compreendia.

As movimentações para a conquista do poder, ficaram, em poucos dias, ao rubro.

O grande problema, pensava eu, é que, as pessoas com que eu me dava, que na sua maioria não morria de amores pelas estruturas políticas vigentes, muito embora poucos ou nenhuns soubessem o que era política ou as diferenças entre o que cá se passava e o que existia noutros lugares, eram da minha idade ou pouco mais velhas. No meu circulo de amigos, que era enorme, só um ou dois, sabiam mais ou menos do que falavam.

Eu, ainda não tinha, na altura, vinte e dois anos, e de política sabia pouco menos do que sei hoje. E hoje o que sei é que é feita, na sua grande maioria, por uma cambada de aproveitadores da boa fé dos outros, para não dizer mais.

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Passaram entretanto muitos anos. Os da minha geração, são na sua maioria avós. A revolução vingou. As coisas mudaram. Os ânimos, durante muito tempo exaltados, acalmaram. Já há quem não queira festejar oficialmente a data de todas as mudanças.

Hoje, já todos podemos falar o que nos apetecer, ou quase. Já podemos clamar por justiça (essa, ao fim de tantos anos não sei se não estará pior), já podemos dizer o que nos vai na alma embora com algum cuidado, já podemos votar em toda e qualquer eleição, já somos todos iguais (embora, como sempre, haja uns mais iguais que outros), e já todos temos acesso a todo e qualquer cargo ou estudo sem haver a necessidade de provar que se tem habilitações ou categoria para tal, bastando em muitos casos ter amigos ou compadres. A corrupção, que estava confinada a alguns, está agora disseminada por todo o lado. Está tudo muito mais democratizado, e de uma maneira geral, vivemos todos melhor um bocadinho.

Para além destas coisas, a democracia trouxe-nos outras. Também já todos podemos insultar, mentir, e atropelar, tendo para isso o apoio incondicional e o exemplo das estruturas que nos governam. Já não há códigos morais que nos impeçam de fazer seja o que for. A educação está pela hora da morte, assim como os problemas laborais, o preço da vida, as injustiças e qualidade dos governantes. Sexo, a partir das mais tenras idades, deixou de ser pecado. As toneladas de ouro que os «fascistas» tinham acumulado e guardado, desapareceram em pouco tempo. Fizemos uma descolonização «exemplar». Deixamos de ter um escudo forte e passamos a ter um euro a preço europeu. Passamos os últimos trinta anos em crise económica com as diferenças entre quem mais ganha e menos aufere, a serem maiores que no tempo da «outra senhora» Há conflitos em todo o lado e em todas as estruturas do País. Já nada impede que, seja quem for, por cá entre para nos fazer mal, ou ensinar a fazer. Os crimes violentos têm vindo a aumentar dia a dia, surgindo a todo o momento, novas formas e novos tipos. A nossa juventude parece andar perdida, sem rumo.

Mudou muita coisa, mas muita outra ficou na mesma. E na que mudou, nem tudo foi para melhor. Globalmente, mudaram os mandantes, mas não as formas de mandar.

Hoje, estou convencido de que tudo acabou por ser feito às avessas.

Perdemos uma excelente oportunidade de fazer um País maravilhoso.

Aquele que foi um dia de muitos ganhos, foi também o dia de quase todas as perdas.

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sábado, 24 de abril de 2010

A MINHA VIAGEM A PRAGA - COMO SE FORA UM CONTO

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A MINHA VIAGEM A PRAGA

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Já há muito tempo que desejava ir à República Checa. Minha mulher, sabendo desse desejo, marcou uma viagem num semana de férias. Era agora. Estava a chegar o dia.

Com entusiasmo, procurei nas casas de câmbios e nos principais bancos, coroas para trocar por euros. Não havia, nada, nenhuma. Mas informaram-me que, logo no aeroporto de Ruzyne, e também por todo a cidade, encontraria locais para esse câmbio. Fiquei descansado. Afinal, iria para uma cidade, para um país, pertencente à Comunidade Europeia.

Desde o fim da década de oitenta do século passado que se pode, com facilidade, visitar esta cidade, durante tanto tempo escondida pelo regime comunista.

Iria conhecer o antigo Cemitério Judaico, o Loreto, o Convento de Santa Inês, o Monte Petrin, a Galeria Nacional, a Catedral de S. Vito, a Praça Venceslau e aproveitar para relembrar a Primavera de Praga, o Castelo, a Praça da Cidade Velha para ver entre outras coisas o relógio Astronómico, e a Ponte Carlos, a mais importante da cidade, sobre o rio Moldava, tentando ver as estátuas de pedra. Iria andar à beira rio, parando para beber grandes copos de cerveja, visitaria museus e galerias de arte, iria a lojas e mercados, pararia para ouvir tocar os artistas nas ruas, e visitaria os locais por onde andou Dvorak, Mozart ou Kafka.

Iria ser mais uma visita que me iria ficar gravada para sempre, e eu estava realmente muito entusiasmado.

Entretanto, longe, muito longe, um vulcão despertou. Dormia já há cerca de duzentos anos. Resolveu acordar agora. Espreguiçou-se e vomitou lava e cinzas em quantidades fenomenais. Aos poucos os céus ficaram escuros. Uma enorme nuvem de cinzas vulcânicas, com doze quilómetros de altura, ameaçou inundar o planeta. Os problemas mundiais, ficaram reduzidos a cinzas.

Espalhou-se pela Europa, e a Europa parou. Os aviões pararam com receio da nuvem, e ela, cheia de força, foi aumentando de tamanho. As pessoas ficaram retidas nos aeroportos, estando, a maior parte deles, encerrados ao tráfego. Os comboios encheram. Os autocarros ficaram superlotados e iniciaram novas rotas. Os carros de aluguer desapareceram. Os prejuízos cresceram para os operadores turísticos e ninguém assumia quaisquer responsabilidades. Os taxistas europeus exultaram com o acréscimo de trabalho, excepto, vá-se lá perceber porquê, os portugueses.

A minha ida a Praga, começava a ficar comprometida. No entanto, a esperança seria a última a morrer. Tudo estava previsto para que ao meio dia do dia do meu voo, o aeroporto, lá no centro da Europa, abrisse.

Dia da partida, cinco da manhã.

Cheio de sono, dirigi-me ao aeroporto Sá Carneiro. Infelizmente, o meu voo teria uma paragem no aeroporto da capital do País. Detesto voos que não sejam directos.

Preparativos feitos, bilhete de embarque na mão, malas despachadas para Praga, e garantia verbal de que o aeroporto de Ruzyne estaria aberto no fim da manhã. Satisfeito, embarco rumo à República Checa, com paragem em Lisboa.

Dia da partida, dez e meia da manhã.

Aeroporto da capital do País que já foi um Império apinhado de gente, que esperava e desesperava por um avião que os levasse dali para fora. Brancos, pretos, amarelos, vermelhos ou mulatos, eram aos milhares. Uns zangados, alguns desesperados, muitos tristes, a maioria resignada.

Eu, contente, com o meu cartão de embarque no bolso.

Pouco antes da hora aprazada para o início do voo, a notícia. «Apesar da abertura do aeroporto na República Checa, e dadas as poucas garantias oferecidas pelos responsáveis de Ruzyne, a TAP não voaria para lá».

Que fazer?

Juntei-me aos outros milhares que desesperavam, com o acréscimo de raiva provocada por me terem enviado para o aeroporto da capital portuguesa, quando, soube na altura, a decisão de não efectuar o voo teria sido tomada cedo na manhã, a tempo de não me terem deixado embarcar.

Com muita sorte, misto de duas funcionárias competentes e da força de conjunto com outro companheiro de viagem, lá nos reenviaram para o Porto, tendo perdido no entanto a validade da ligação futura para uma outra visita à capital da República Checa, válida até ao final de ano.

Doze horas depois, estava de novo em casa, com uma semana de férias pela frente.

Meti-me no carro e lá vamos nós à aventura. Tinha ouvido falar de um hotel bom em Melgaço. Também tinha um rio e pontes e não tinha problemas de cinzas. Por lá fiquei dois dias. Comi bem. A Adega do Sossego é realmente um sossego e o bacalhau da Estalagem em Castro Laboreiro, é do melhor. Dormi melhor. Os quartos do hotel são realmente bons. Depois rumei a Mondim de Basto. O novo hotel, no cimo do monte, é do melhor, com uma paisagem fabulosa.

Ao fim de mais três dias, o regresso.

Esquecendo a necessidade de mudança de planos, a semana de férias foi do melhor que poderia ter tido. A troca de destino, acabou por ser benéfica.

Durante estes dias, fiz por não ouvir notícias. Normalmente são deprimentes e só servem para me aborrecer.

Chegado ao Porto, tive de saber das novas. Pelos vistos, foi uma semana onde nada aconteceu. Os aviões não voaram, o senhor Soares não falou falando e pedindo desculpas, o nosso Presidente ainda não decidiu o que fazer com o casamento gay, Valença continua sem Centro de Saúde, O PSD-Madeira, recusa mais uma vez comemorar o 25 de Abril, as portagens nas Scuts vão avançar segundo o governo mas uma providência cautelar pode parar todo o processo e as viagens da sra Inês continuarão a ser pagas por todos nós.

Durante as minhas férias afinal, nada mudou, mesmo que eu e minha mulher não tenhamos ido a Praga.

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sexta-feira, 9 de abril de 2010

COMO SE FORA UM CONTO - NATÁLIA, A CIGANA

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NATÁLIA, A CIGANA
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Natália era cigana. Vivia num acampamento no meio do pinhal, lá para as bandas de Albergaria. Não teria mais de quinze anos e era muito bonita e vistosa.
Como qualquer uma na sua situação, passava por muitas dificuldades. Havia dias em que faltava a comida. Havia dias em que faltava todo o resto. Nesses dias ela sentia falta da escola onde já não ia há mais de quatro anos. O trabalho de apanhar gravetos no pinhal, de lavar a roupa da catrefada de irmãos, de procurar água para se lavar ou comida para se alimentar, de ajudar os pais na sobrevivência do dia a dia, eram mais importantes que a aprendizagem numa qualquer escola.
Natália tinha uma amiga dos tempos da escola. Leonor não era cigana nem passava dificuldades como as de Natália, mas trabalhava de sol a sol, nas lides do campo, nas lides da casa, nos estudos que sabia importantes para o seu futuro. A amizade das pequenas era tal que Leonor, tinha permissão de visitar o acampamento, aprendera danças e cantares ciganos, assistira a rixas e desacatos entre os membros da comunidade, fora ensinada nos segredos da leitura das linhas das mãos e noutros, era considerada como mais uma de entre todos, embora sempre com a distância óbvia que a diferença de raças e de educação impunham.
Os ciganos em Albergaria, como na maior parte do nosso País, eram olhados de lado pela restante população. Dificilmente lhes ofereciam emprego, com frequência eram associados à existência de pequenos roubos, a enganos e trafulhices e a tráfico de fosse o que fosse e não eram entendidos na sua forma de viver.
Por isso, quando Leonor convidou Natália para ir com ela à festa dos rojões, as resistências, tanto da parte da família da primeira como da comunidade da segunda, logo se fizeram sentir. Foi preciso muito jogo de cintura, muita persuasão, muito saber, da parte de Leonor, para conseguir convencer toda a gente. Mas conseguiu.
A festa dos rojões, nem sei se é mesmo assim que se chama, consistia, grosso modo, em vender, como meio de angariar dinheiro para os pobres da freguesia, rojões, aos homens mais abastados da terra e a outros que se lhes quisessem associar. O preço, alto, era pago por rojão comido, sem contar com o arroz ou as batatas, ou o pão ou o vinho, e os comensais faziam competição, entre eles, a ver quem mais comia e, claro, quem mais pagava. Normalmente, conseguiam reunir mais de uma centena de homens, e outro tanto de mulheres e de crianças.
As mulheres, não tinham lugar à mesa. Ficavam pela cozinha, normalmente improvisada no meio do campo, e «serviam» a comida e a bebida. A mesa, como rezava a tradição de várias dezenas de anos, era só para os homens. As crianças, para não incomodarem, ficavam à solta, brincando ao redor da cozinha e das saias das mães.
O terreiro onde a festa se realizava, estava engalanado como nas festas do Senhor Menino, com muitas cores e flores de papel. A banda, no coreto, tocava desde manhã, mais ou menos cedo, parava durante a comezaina, e recomeçava no início da tarde, já com muita dificuldade. Havia uma explicação lógica para essa dificuldade. Como a maior parte dos instrumentos era de sopro, e se notava uma clara falta de força nas assopradela e de destreza nos dedos, as fífias eram enormes. Só o menino do timbalão e o dos pratos, iam acertando de quando em vez, mas, na verdade, só porque eles, por serem ainda adolescentes, não tinham tido permissão de beber uma só gota do vinho que em muita quantidade se tinha por lá bebido.
Natália tinha sido avisada para estar pronta lá pelas dez da manhã. Pareceu-lhe tarde, já que nas festas que havia no seu acampamento, as mulheres começavam a preparar as coisas ainda de madrugada. Começando às dez, não ia haver tempo, pensou, ou se calhar, a ela por ser de fora e novita, não queriam que fosse trabalhar muito cedo.
Leonor foi buscá-la, e as duas, calmamente, foram-se dirigindo ao recinto. Com elas e pelo caminho que ainda era longo, foram aparecendo mais e mais mulheres. Novas, velhas e de meia idade, gordas e magras e uma enormidade de catraios. Todas sem excepção carregada com seiras que, para um bom observador, estavam leves de tão vazias. Ao todo muito mais de cem mulheres e crianças iam, conversando animadamente para o «trabalho». Afinal, verificou Natália, só agora é que as mulheres, todas, mas mesmo todas, chegavam.
No terreiro, quando chegaram, a azáfama era enorme. Homens e mais homens por todo o lado, e a banda já estava a tocar. Algumas camionetas de caixa aberta, ainda por lá estavam a acabar de descarregar coisas. Montavam-se as tendas e nelas as respectivas mesas e cadeiras. Montava-se a cozinha, e preparava-se tudo para acender o fogo que iria cozinhar o arroz, as batatas e os rojões. A um canto, um forno tinha já gravetos a arder e, aquecia, lentamente. Os homens, muito embora já cansados, divididos em equipas, não paravam, de modo a ter tudo a postos. Já lá estavam havia horas. Pelo menos desde as sete da manhã. A montagem das tendas e o cortar das carnes tinha sido o que mais os demorara.
Na cozinha, enormes alguidares com batatas já sem pele, rojões cortados e preparados em vinha de alhos e prontos a cozinhar, alfaces lavadas, tomates cortados em rodelas, calda para o arroz e dúzias de garrafões de vinhos brancos e tintos, broas enormes cortadas aos pedaços e muito pão de mistura. Tudo preparado para que as mulheres começassem o seu trabalho.
As vozes femininas começaram a sobrepor-se às dos homens. Aos poucos, e logo depois de as mesas estarem o postos, com as toalhas de plástico e papel, com os copos e as cadeiras, os homens começaram a ser expulsos da cozinha e das tendas.
Agora era a vez delas.
Dividiram-se em grupos. Natália e Leonor, ficaram encarregadas de colocar os guardanapos nas mesas, os homens tinham falhado nisso, separar os bocados de broa já cortada e colocá-los em cestos, temperar as alfaces e os tomates, e no fim, quando estivesse tudo pronto, lá mais para a uma hora da tarde, iriam ajudar a servir à mesa.
Entretanto as outras mulheres começaram a cozinhar, já que a preparação das coisas já estava praticamente toda feita. Tachos e panelas, enormes, tinham sido, entretanto, descarregados de duas carrinhas, e já tudo se poderia fazer. Como que por encanto, os homens desapareceram.
Numa espreitadela, poderiam ser vistos a, de longe, apreciar o trabalho já realizado, com orgulho no olhar, enquanto, encostados pelos cantos ou sentados nas cadeiras do café do sr Aníbal, descansavam de horas de trabalho e afiavam os dentes para a patuscada.
A banda, essa não pararia a não ser dez minutos a cada hora. E estava quase a descansar pela segunda vez.
No meio do grupo dos homens, alguns havia que se sabia não iriam pagar a conta no fim da comezaina. Tratava-se dos chefes de cinco famílias das mais pobres da zona. Eram homens doentes, sem emprego e sem terras para tratar. Tinham trabalhado como os outros, ou talvez mais, e todos entendiam que tinham direito a comer o que quisessem, mesmo sem a retribuição monetária.
Com o passar do tempo, começaram a chegar outros homens. Forasteiros que, sabendo da festa na vila, queriam associar-se ao evento. Naquele ano, foram muitos os que os visitaram. A festa ia ser um sucesso.
À hora aprazada, os comensais começaram a aproximar-se das mesas, a sentarem-se, a petiscar na broa e bebericando do vinho.
As mulheres entretanto, tinham trabalhado com afinco. Por entre conversas de coscuvilhice, anedotas, risos e coisas mais ou menos sérias, lá iam provando dos rojões, do arroz, do vinho, e da broa. As faces, com o calor e as provas, iam rosando. As palavras subindo de tom. Os risos mais insistentes e constantes. Reinava a alegria, a amizade, o companheirismo. Não era todos os dias que tinham tempo para se encontrarem, porem as conversas em dia, dizerem mal dos companheiros, falarem das vidas de umas e outras. Por certo que, os melhores nacos de rojões teriam já desaparecido, quando deram por terminados os cozinhados e decidiram ser altura de «servir».
Os homens comeram a bom comer, já que os rojões estavam de estalo, e beberam ainda melhor. As horas foram passando e já seriam perto das cinco horas da tarde, com a banda a dar fífias em cima de fífias, quando os primeiro desistentes se levantaram e foram fazer contas à cozinha. Sim, porque quem recebia o dinheiro de cada um dos homens, era a matriarca da terra, a sra Zulmira, mulher grande e anafada, de mais de oitenta anos, fina como um rato, e cheia de uma vivacidade de fazer inveja a muita gente nova.
Aos poucos as mesas foram ficando vazias. Eram já mais de seis horas da tarde. Havia ainda muito para fazer.
Os homens, já, muitos deles, toldados pela bebida, teriam ainda de desmontar mesas e cadeiras, que as tendas ficariam para o dia seguinte. Teriam ainda de recolher tachos e panelas, pratos e talheres, copos e garrafões, transportá-los e arrumá-los.
As mulheres, depois de lavarem toda a louça, dividiram entre elas toda a comida que sobejou, e era muita. Abriram as seiras que tinham trazido, de onde retiraram caixas plásticas e foram-nas enchendo de arroz e de rojões. Toda a gente, em particular os membros das famílias mais necessitadas e que não tinham pago, levaram para suas casas comida para várias refeições.
Natália, que não tinha levado nenhuma vasilha ou caixa com ela, uma vez que nem sabia que podia e devia, viu-se de repente sem poder levar comida para casa. Ficou triste.
Quando deram por isso, todas as mulheres quiseram dar uma caixa, a mais pequena, que cada uma tinha, para a miúda poder levar consigo. Foi difícil aceitar tudo, já que ela não poderia transportar tanta coisa. Leonor ajudou e, num carrinho de mão, levaram para o acampamento da pequena cigana comida para a família toda e para os amigos.
A festa tinha sido um êxito. A sra Zulmira estava radiante com os números alcançados.
Tinha acabado a festa. À alegria de todo o dia, juntava-se a meia tristeza pelo final de um dia de férias. Para o ano haveria mais, mas entretanto, se fosse possível, haveriam de fazer umas outras festinhas mais pequenas, a bem de todos.
As tradições, nestas terras, são muito do pouco que essas pessoas têm, e servem para o bem comum, sempre.

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sábado, 3 de abril de 2010

COMO SE FORA UM CONTO - PÁSCOA

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O COMPASSO JÁ NÃO VEM A MINHA CASA
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Ao contrário de muitos que fazem questão de dizer que são tudo menos católicos, e que, em todas as manifestações religiosas, cá nos vêm informar da sua não religiosidade, como se isso fosse de algum interesse, não tenho por hábito falar das minhas convicções.

Desta vez, no entanto, resolvi vir falar da minha tristeza por já não ter o Compasso em minha casa, e da minha saudade dos tempos em que, em casa de meu avô paterno, toda a família se reunia para o receber.

O dia amanhecia muito cedo para toda a gente, excepto para nós, crianças. Éramos nove primos, e seis de nós dormíamos naquela casa. Era como se fosse Natal, mas não havia prendas. Quando nos levantávamos, ao som de fundo dos foguetes, já nossas mães e tias se atarefavam nas lides de tudo deixar a postos para «receber o Senhor», e a senhora Margarida e uma ajudante labutavam na cozinha para que o almoço fosse como sempre, sublime.

Na porta principal da casa, bem virada para a avenida que tinha o nome da data da Restauração da Independência, o chão era enfeitado com folhas de heras e pétalas de rosas, numa passadeira que me parecia na altura muito bonita, de modo a que o senhor abade reconhecesse qual a casa que o quereria receber, e ao Senhor, passasse por cima dela em direcção aos degraus que havia logo na entrada e se dirigisse à sala de visitas, engalanada com flores. Lá, amêndoas, doces sortidos, arroz doce, Pão de Ló, um pão de folar e vinho do Porto de muito boa qualidade, esperavam o padre e a sua comitiva. Tudo em cima de bandejas de prata.

Como de costume, a sorte bafejava-nos e a visita Pascal à nossa casa, era efectuada de manhã, relativamente cedo. A casa era relativamente perto da igreja, no centro da vila. Para além de nos deixar todo o resto do dia livre, ainda se conseguia falar um pouco com o Pároco (os meus avós, os meus tios e os meus pais), uma vez que tanto ele como o sacristão que o acompanhava, ainda não tinham cumprido muitas vezes a obrigação de bebericar um pouco de Porto, em casa de cada um dos visitados.

Pelas dez, começávamos a ouvir a banda tocar. Estavam na casa do sr dr farmacêutico. Faltavam duas casas para que entrasse na nossa, e essas não iam ter direito a música. A banda só tocava em frente das casas das famílias importantes lá da terra. A sineta, tocado vigorosamente e a preceito por um dos acólitos, normalmente um rapazito, também anunciava a eminente chegada do Compasso, e sobrepunha-se ao som dos badalos do sino da Igreja, que sem cansaço iam anunciando o Domingo de Aleluia. Pais e tios chamavam, apressados, os seus filhos e sobrinhos, e mais toda a gente da casa, para que se dirigissem à sala de visitas. E por lá ficávamos alguns minutos, em silêncio, ansiosos, à espera.

De repente, chegavam. «Feliz Páscoa, Aleluia, Aleluia». O abade à frente, logo seguido do sacristão e do Mordomo, que trazia nas mãos a cruz de Cristo. Meia dúzia de acólitos com opas vermelhas, entravam também. A banda, que tinha estado calada nos últimos minutos, recomeçava a tocar, ainda com mais força. O som, entrava com toda a pujança pela casa dentro, de modo que quase era difícil ouvir as palavras iniciais do sr Padre, que sempre se diziam à entrada, «Deus abençoe esta casa e todos os que a habitam».

Todos, sem qualquer excepção, se ajoelhavam e todos beijavam os pés do Senhor na cruz ornamentada, um a um, após uma breve e rápida passagem do algodão, a fingir que se limpava algum resíduo, entre cada ósculo, começando sempre pelo meu avô.

A casa era então aspergida com água benta, e depois, um bocadito de conversa de circunstância, uns afagos nas cabeças das crianças feitos pelo senhor Cura e lá se lhe oferecia uma cadeira para descansar, que a caminhada iria ser longa, e um ou mais cálices de Porto, que nunca enjeitava. Todos se abeiravam então da mesa, sem qualquer cerimónia. Um envelope, o folar do sr Abade, que durante anos não soube o que continha, mudava das mãos do meu avô para as do Padre, e destas para um bolso interior, por baixo dos paramentos. Em cinco minutos lá estava o senhor Prior de volta à rua a caminho da casa seguinte. «Feliz Páscoa, Aleluia, Aleluia!».

Ainda faltava algum tempo para o almoço. Agora era altura de arrumar a sala e acabar de preparar a comezaina, que como de costume, saída das mãos da srª Margarida, iria ser uma maravilha.

O resto do dia era, para nós, crianças e adolescentes, uma brincadeira. Sempre com o som de fundo dos sinos da igreja a apagar o silêncio, e o da banda que a espaços ia tocando. Os adultos tinham ainda de receber algumas visitas de vizinhos ilustres, e ir fazer uma ou duas.

Entretanto fomos crescendo, os meus avós desapareceram, pais e tios foram também desaparecendo, restando muito poucos, velhinhos, a casa e o terreno acabaram por ser vendidos e transformados num centro comercial e a tradição esfumou-se quase sem darmos por ela.

Hoje, nada resta, a não ser uma saudade imensa.


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quinta-feira, 1 de abril de 2010

COMO SE FORA UM CONTO - HISTÓRIAS DO DIA 1 DE ABRIL


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A SRª D. ANÉSIA, O SR DR. ANTUNES E O PRIMEIRO DE ABRIL
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Convivi com eles muitos anos, perto de vinte, para mais que não para menos. Viviam no primeiro andar do meu prédio. Foi para esse andar que, nos idos de 78, eu fui viver, separando-me da casa de meus pais.

Ela, muito católica, oriunda do norte Valenciano, de lábios finos e nariz adunco, ele, economista, ex-funcionário da alfândega, coleccionador de selos. Ambos de uma bondade extrema, de uma educação esmeradíssima, de idade avançada, silenciosos, reformados, amigos.

Sem filhos, mas com uma sobrinha que a cada passo aparecia e que era a luz dos olhos deles, não lhes conheci amigos ou outros familiares. Viviam sós, um para o outro, a maior parte do tempo na sala virada ao sol, de onde viam o arvoredo do Consulado e o quintal que numa parte também lhes pertencia.

Davam-se muito bem connosco, em especial com a minha mãe, por quem tinham uma consideração especial.

O Sr. Dr. Antunes, era um velhinho muito culto, a quem eu achava muita graça ouvir falar. Utilizava com frequência termos que já nessa altura pareciam fora de moda. Com frequência o ouvia tratar as pessoas por excelência e pedir coisas por obséquio. Tinha uma voz agradável, um tanto ou quanto cantarolada e em momentos, aguda. A sua forma de falar lembrava-me a do Presidente do Conselho de Ministros da altura.

A Srª D. Anésia, era como disse uma velhinha adorável e muito religiosa. Não raras vezes as suas conversas versavam sobre a igreja, e eu, sempre que podia fugia, deixando à minha irmã, a função de a ouvir atentamente.

As minhas lembranças estão hoje um tanto ou quanto confusas, já que tudo isto se passou na minha infância e início de juventude, e, já faleceram para mais de trinta anos, primeiro ele. Mas, ainda me lembro que estes dois velhinhos adoráveis viviam um para o outro, numa solidão quase só quebrada pelas visitas da sobrinha, por quem tinham uma adoração incomensurável. Quase, porque para além das visitas quase diárias, da minha irmã, da minha mãe ou minhas, havia um dia, um em cada ano, que eles esperavam ansiosamente que chegasse. Recebiam nesse dia uma prenda que lhes possibilitaria falar dela muitas e muitas vezes, ao longo do ano que se avizinhava. Era o primeiro de Abril.

Havia quem se soubesse divertir, e divertir e fazer felizes os outros. Era o caso da minha mãe. Senhora muito alegre, sempre pronta para a brincadeira, de uma imaginação prodigiosa, preenchia algum do seu tempo a imaginar, ano após ano, uma partida engraçada para fazer aos amigos mais chegados, no chamado dia das mentiras.

Dos seus amigos, os únicos a quem a minha mãe nunca deixou de ligar enquanto ambos viveram, e o alvo privilegiado desses gracejos, eram o casal Antunes.

Sempre nos convencemos que este divertimento quase nunca era detectado pelos «alvos», e no caso dos nossos vizinhos e amigos, esse facto era uma certeza. Dessa forma, só muito mais tarde, às vezes meses depois, é que em conversa, a minha mãe lhes dizia que tinha sido ela a autora desta ou daquela brincadeira. Sempre se mostraram surpreendidos e com novo alento para voltar a falar da última partida que tinham sofrido, mais algumas vezes, acrescentando a partir daí o quanto a minha mãe tinha conseguido enganá-los.

Normalmente, as brincadeiras eram «servidas» ao fim da manhã, perto da hora de almoço, ou logo no princípio da tarde. Mas um ano houve em que a minha mãe se atrasou e só fez o telefonema, pois que o gracejo era sempre efectuado via telefone, muito perto da hora de jantar.

A voz que atendeu o telefone, a do dono da casa, mostrava alguma impaciência. O «estou sim?» que se ouviu quando atendeu logo ao primeiro toque, era expectante.

A voz da minha mãe, muito profissional e modificada para uma outra nunca antes tentada, de uma forma que só ela conseguia fazer, cumprimentou e perguntou se era da casa do sr Dr Antunes. Do outro lado ouviu-se «é sim, minha senhora, muito boa tarde, faça o obséquio de dizer» e, logo em seguida e em surdina falando com voz alterada para o lado «Anésia, Anésia, é agora, vem ouvir!» e uma outra voz, esta feminina acompanhada do som de passos apressados «Ai que bom, eu não te disse que não se iria esquecer?».


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