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SOBRE A GREVE DOS PROFESSORES
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A minha entrada no ensino foi feita numa pequeníssima
aldeia rural do norte. Éramos uns 80 alunos, da 1ª à 4ª classe, todos
juntos na mesma e única sala de aula da escola - que não me lembro se
tinha ou não casas-de-banho, mas sei que não tinha qualquer espécie de
aquecimento contra o frio granítico, de Novembro a Março, que nos colava
às carteiras duplas, petrificados como estalactites. Lembro-me de que o
"recreio" era apenas um pequeno espaço plano, enlameado no Inverno, e
onde jogávamos futebol com uma bola feita de meias velhas e balizas
marcadas com pedras. A escola não tinha um vigilante, um porteiro, uma
secretária administrativa. Ninguém mais do que a D. Constança, a
professora que, sozinha, desempenhava todas essas tarefas e ainda
ensinava os rios do Ultramar aos da 4ª classe, a história pátria aos da
3ª, as fracções aos da 2ª, e as primeiras letras aos da 1ª. Ela,
sozinha, constituía todo o pessoal daquilo a que agora se chama o 1º
ciclo. Se porventura, adoecesse, ou se na aldeia houvesse, que não
havia, um médico disposto a passar-lhe uma baixa psicológica ou outra
qualquer quando não lhe apetecesse ir trabalhar, as 80 crianças da
aldeia em idade escolar ficariam sem escola. Mas ela não falhou um único
dia em todo o ano lectivo e eu saí de lá a saber escrever e para sempre
apaixonado pela leitura. Devo-lhe isso eternamente.
Nesse tempo, não havia Parque Escolar, não havia
pequenos-almoços na escola (que boa falta faziam!), não havia
aquecimento nas salas, não havia o recorde de Portugal e da Europa de
baixas profissionais entre os professores, não havia telemóveis nem
iPads com os alunos, não havia "Magalhães" ao serviço dos meninos, mas
sim lousas e giz, os professores não faziam greves porque estavam
"desmotivados" ou "deprimidos" e a noção de "horário zero" seria levada à
conta de brincadeira. Era assim a vida.
Não vou (notem: não vou) sustentar que assim é que
estava bem. Limito-me a dizer que tudo é relativo e que nada do que
temos por adquirido, excepto a morte, o foi sempre ou o será para
sempre. E sei que na Finlândia - o país considerado modelo no ensino
básico e secundário pela OCDE - os professores trabalham mais horas do
que aqui, não faltam às aulas e ganham proporcionalmente menos. Com
resultados substancialmente melhores, do único ponto de vista que
interessa aos pais e aos contribuintes: o desempenho escolar dos alunos.
Só uma classe que recusou, como ultraje, a
possibilidade de ser avaliada para efeitos de progressão profissional -
isto é, uma classe onde os medíocres reivindicaram o direito
constitucional de ganharem o mesmo que os competentes - é que se pode
permitir a irresponsabilidade e a leviandade de decretar uma greve aos
exames nacionais. Nisso, são professores exemplares: transmitem aos
alunos o seu próprio exemplo, o exemplo de quem acha que os exames, as
avaliações, são um incómodo para a paz de um sistema assente na
desresponsabilização, na nivelação de todos por baixo, na ausência de
estímulo ao mérito e ao esforço individual.
Mas a greve dos professores vai muito para lá deles:
reflecte o estado de espírito de uma parte do país que não entendeu ou
não quer entender o que lhe aconteceu. Deixem-me, então recordar:
Portugal faliu. O Portugal das baixas psicológicas, dos direitos
adquiridos para sempre, das falcatruas fiscais, das reformas
antecipadas, dos subsídios para tudo e mais alguma coisa, dos salários
iguais para os que trabalham e os que preguiçam, faliu. Faliu: não é
mais sustentável. Podemos discutir, discordar, opormo-nos às condições
do resgate que nos foi imposto e à sua gestão por parte deste Governo:
eu também o faço e veementemente. Mas não podemos, se formos sérios,
esquecer o essencial: se fomos resgatados, é porque fomos à falência; e,
se fomos à falência, é porque não produzimos riqueza que possa
sustentar o modo de vida a que nos habituámos. Se alguém conhece uma
alternativa mágica, em que se possa ter professores sem crianças,
auto-estradas sem carros, reformas sem dinheiro para as pagar,
acumulando dívida a 6, 7 ou 8% de juros para a geração seguinte pagar,
que o diga. Caso contrário, tenham pudor: não se fazem greves porque se
acaba com os horários zero, porque se estabelece um horário semanal (e
ficcional) de 40 horas de trabalho ou porque o Estado não pode sustentar
o mesmo número de professores, se os portugueses não fazem filhos.
Por mais que respeite o direito à greve, causa-me uma
sensação desagradável ver dirigentes sindicais, dos professores e não
só, regozijarem-se porque ninguém foi trabalhar. Ver um sindicalismo de
bota-abaixo constante, onde qualquer greve, qualquer manifestação, é
muito mais valorizada e procurada do que qualquer acordo e qualquer
negociação - como se, por cada português com vontade de trabalhar,
houvesse outro cujo trabalho consiste em dissuadi-lo desse vício. Assim
como me causa impressão, no estado em que o país está, saber que quase
200.000 trabalhadores pediram a reforma antecipada em 2012, mesmo
perdendo dinheiro, e apesar de se queixarem da crise e dos constantes
cortes nas pensões. Porque a mensagem deles é clara: "Eu, para já, mesmo
perdendo dinheiro, safo-me. Os otários que continuarem a trabalhar e
que se vierem a reformar mais tarde, em piores condições, é que lixam!" É
o retrato de um país que parece ter perdido qualquer noção de destino
colectivo: há um milhão de portugueses sem trabalho e grande parte dos
que o têm, aparentemente, só desejam deixar de trabalhar. Será assim que
nos livraremos da troika?
As coisas chegaram a um ponto de anormalidade tal,
que, quando o ministro da Educação, no exercício do seu mais elementar
dever - que é o de defender os direitos dos alunos contra a greve dos
professores - convoca todos eles para vigiar os exames, aqui d'El Rey na
imprensa bem-pensante que se trata de sabotar o legítimo direito à
greve. Ou seja: que haja professores (que os há, felizmente!) dispostos a
permitir que os alunos tenham exames é uma violação ilegítima do
direito dos outros a que eles não tenham exames. Di-lo o dr. Garcia
Pereira, o advogado dos trabalhadores e do dr. Jardim, infalível
defensor da classe operária, e o mesmo que, no final do meu tempo de
estudante, na Faculdade de Direito de Lisboa, invocando os ensinamentos
do grande camarada Mao, decretava greve aos "exames burgueses" - que o
fizeram advogado.
Não contesto que as greves, por natureza, causem
incómodos a outrem - ou não fariam sentido. Mas há limites para tudo.
Limites de brio profissional: um cirurgião não resolve entrar em grave
quando recebe um doente já anestesiado pronto para a operação; um
controlador aéreo não entra em greve quando tem um avião a fazer-se à
pista; um bombeiro não entra em greve quando há um incêndio para apagar.
Eu sei que isto que agora escrevo vai circular nos blogues dos
professores, vai ser adulterado, deturpado, montado conforme dê mais
jeito: já o fizeram no passado, inventando coisas que eu nunca disse, e
só custa da primeira vez. Paciência, é isto que eu penso: esta greve dos
professores aos exames, por muitas razões que possam ter, é
inadmissível.
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
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