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A SRª D. ANÉSIA, O SR DR. ANTUNES E O PRIMEIRO DE ABRIL
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Ela, muito católica, oriunda do norte Valenciano, de lábios finos e nariz adunco, ele, economista, ex-funcionário da alfândega, coleccionador de selos. Ambos de uma bondade extrema, de uma educação esmeradíssima, de idade avançada, silenciosos, reformados, amigos.
Sem filhos, mas com uma sobrinha que a cada passo aparecia e que era a luz dos olhos deles, não lhes conheci amigos ou outros familiares. Viviam sós, um para o outro, a maior parte do tempo na sala virada ao sol, de onde viam o arvoredo do Consulado e o quintal que numa parte também lhes pertencia.
Davam-se muito bem connosco, em especial com a minha mãe, por quem tinham uma consideração especial.
O Sr. Dr. Antunes, era um velhinho muito culto, a quem eu achava muita graça ouvir falar. Utilizava com frequência termos que já nessa altura pareciam fora de moda. Com frequência o ouvia tratar as pessoas por excelência e pedir coisas por obséquio. Tinha uma voz agradável, um tanto ou quanto cantarolada e em momentos, aguda. A sua forma de falar lembrava-me a do Presidente do Conselho de Ministros da altura.
A Srª D. Anésia, era como disse uma velhinha adorável e muito religiosa. Não raras vezes as suas conversas versavam sobre a igreja, e eu, sempre que podia fugia, deixando à minha irmã, a função de a ouvir atentamente.
As minhas lembranças estão hoje um tanto ou quanto confusas, já que tudo isto se passou na minha infância e início de juventude, e, já faleceram para mais de trinta anos, primeiro ele. Mas, ainda me lembro que estes dois velhinhos adoráveis viviam um para o outro, numa solidão quase só quebrada pelas visitas da sobrinha, por quem tinham uma adoração incomensurável. Quase, porque para além das visitas quase diárias, da minha irmã, da minha mãe ou minhas, havia um dia, um em cada ano, que eles esperavam ansiosamente que chegasse. Recebiam nesse dia uma prenda que lhes possibilitaria falar dela muitas e muitas vezes, ao longo do ano que se avizinhava. Era o primeiro de Abril.
Havia quem se soubesse divertir, e divertir e fazer felizes os outros. Era o caso da minha mãe. Senhora muito alegre, sempre pronta para a brincadeira, de uma imaginação prodigiosa, preenchia algum do seu tempo a imaginar, ano após ano, uma partida engraçada para fazer aos amigos mais chegados, no chamado dia das mentiras.
Dos seus amigos, os únicos a quem a minha mãe nunca deixou de ligar enquanto ambos viveram, e o alvo privilegiado desses gracejos, eram o casal Antunes.
Sempre nos convencemos que este divertimento quase nunca era detectado pelos «alvos», e no caso dos nossos vizinhos e amigos, esse facto era uma certeza. Dessa forma, só muito mais tarde, às vezes meses depois, é que em conversa, a minha mãe lhes dizia que tinha sido ela a autora desta ou daquela brincadeira. Sempre se mostraram surpreendidos e com novo alento para voltar a falar da última partida que tinham sofrido, mais algumas vezes, acrescentando a partir daí o quanto a minha mãe tinha conseguido enganá-los.
Normalmente, as brincadeiras eram «servidas» ao fim da manhã, perto da hora de almoço, ou logo no princípio da tarde. Mas um ano houve em que a minha mãe se atrasou e só fez o telefonema, pois que o gracejo era sempre efectuado via telefone, muito perto da hora de jantar.
A voz que atendeu o telefone, a do dono da casa, mostrava alguma impaciência. O «estou sim?» que se ouviu quando atendeu logo ao primeiro toque, era expectante.
A voz da minha mãe, muito profissional e modificada para uma outra nunca antes tentada, de uma forma que só ela conseguia fazer, cumprimentou e perguntou se era da casa do sr Dr Antunes. Do outro lado ouviu-se «é sim, minha senhora, muito boa tarde, faça o obséquio de dizer» e, logo em seguida e em surdina falando com voz alterada para o lado «Anésia, Anésia, é agora, vem ouvir!» e uma outra voz, esta feminina acompanhada do som de passos apressados «Ai que bom, eu não te disse que não se iria esquecer?».
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Um gosto, lê-lo
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