Já lá vão muitos anos, mas as lembranças fluíam com rapidez.
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Sentado à mesa de um café da baixa Portuense, olhei os meus sapatos e pensei em quanto me saberia bem que aquele café tivesse um engraxador. Apeteceu-me ter os sapatos limpos, escovados e a brilhar.
Se ao menos ainda houvesse engraxadores! Já há muito que os não via. Os últimos estavam naquela entrada da rua Sampaio Bruno, quase em frente à Casa da Sorte. Havia também um ou dois, que paravam na Praça da Liberdade, quase na esquina da rua da ‘engraxadoria’.
Antigamente, não havia café que não tivesse um, e havia trabalho para todos. Todo o homem que se prezasse gostava de ter os sapatos a brilhar. Hoje são raros, os engraxadores, já que sapatos a brilhar ainda os vai havendo, e homens que se prezem ainda há um ou outro.
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O sr Adérito era franzino, pequeno, de pele muito branca e sem barba. Homem dos seus quase cinquenta anos, não parecia ter mais de trinta.
Eu era ainda um chavalo. Nem vinte anos tinha, e na altura, só se era homem depois da maioridade, e essa só vinha aos vinte e um. Hoje não é assim. Os putos, ainda mal desmamados e recentemente saídos de debaixo das saias das mamãs, na sua maioria dependentes inteiramente dos progenitores, chamam-se de pleno direito, homens, e já podem votar e influenciar a vida de um país.
Loiro, de melena lambida e cabelo muito fino, o sr Adérito tinha o tique de, movendo rapidamente cabeça, atirar com a melena para o cimo da cabeça, tirando-a da testa e da frente dos olhos. Tinha sempre um cigarrito ao canto da boca, muitas das vezes, apagado, e ia assobiando fados no meio das histórias que nos contava.
Era homem de muitos conhecimentos da vida, mas de poucos estudos. Tinha tirado a quarta classe, com alguma dificuldade por ser o filho mais velho e haver necessidade de ajudar nos trabalhos da casa e do quintal, e depois, findos esses estudos, tinha ido trabalhar para os campos do Senhor D. António, lá na terra. Aos quatorze anos, fugira para o Porto, e por cá se mantivera desde então.
Até aos dezoito, trabalhara em toda e qualquer coisa, boa e má, e nessa altura fizera-se engraxador por influência de um grande amigo, conquanto recente. Pouco tempo antes tinha ido dar com os costados no chilindró por via de um assalto a um café, mal calculado e mal executado, e lá conheceu o Neca engraxador, internado no mesmo edifício por motivos idênticos, que nas horas vagas, e por amizade, lhe ensinou a arte. Quando saiu da pildra, abraçou esse ofício.
No café onde o sr Adérito trabalhava, um café grande na rua de Ceuta, parávamos nós, estudantes, para lanchar, jogar bilhar na cave, e de longe a longe, estudar.
O homem, com um sorriso constante na face, era bom conversador, e eu bom ouvinte.
Aos poucos fiquei a saber o que era possível saber da vida dele. Tinha seis filhos, um de cada mulher, e vivia sozinho num quarto de uma pensão de quinta categoria, com vistas de rua, na rua Formosa, com serventia de uma cozinha e de um quarto de banho que ficavam ao fundo do corredor do seu andar, o terceiro. Cantava fado duas ou três noites por semana, a troco de um magro jantar e de uns copitos de vinho.
Dos filhos pouco sabia, a não ser do mais novo, e das respectivas mães, nada, a não ser da última. Andava no Tribunal, com ela, por causa de uma pensão de alimentos para o filho, que ele não podia dar. Não tinha, dizia. O pouco que ganhava mal dava para pagar o quarto e para comer. E ele que comia tão pouco. Não conseguia engolir e o estômago tinha minguado. Ficava enfartado logo que bebia um copo. E como bebia outro e mais outro, a comida não cabia. Devia ser por isso, confidenciou-me um dia, que tinha apanhado aquela doença dos pulmões, que o não largava e que o obrigava a tossir constantemente. O cigarro também não ajudava. Eram dois macitos por dia. Dos pequenos, baratitos, mata-ratos (nome que na gíria se dava na altura). Kentuchi, era o nome da marca. Tinha de ser desses baratos, que o dinheiro não chegava para mais. Mas o Juiz não estivera pelos ajustes e mandara-o pagar uma fortuna. Quase trinta escudos cada mês. E ele tinha lá os trinta escudos para pagar. Trinta escudos era uma fortuna. Pensavam que ele era rico ou quê? Cada engraxadela custava menos de um escudo, e não engraxava mais de dez pares de sapatos por dia, nos dias bons, dizia. A média andava pelos cinco ou oito. Daí tinha ainda de tirar para comer e para o quarto e para os cigarritos, que o café e um ou dois bagacitos, ele tomava de borla. Tinha também de comprar a graxa e as tintas e os panos estavam a ficar rotos, e as escovas sem pêlos. Não podia. Não dava para tudo. Mais valia ficar com o puto com ele. Era mais barato. E ele que até gostava muito do miúdo, era parecido com ele. E tendo vindo tarde, era quase como um neto. Mas a mãe não queria, precisava do dinheiro que sobrasse para as coisas dela, que o que ganhava a lavar escadas não chegava. Só se fosse roubar… falava com o som a diminuir, terminando quase a ciciar. Mas que não queria, já tinha passado por isso e não queria voltar. E, dizia meio a brincar, nem tinha saúde para isso.
O dilema do sr Adérito era enorme, e nós, amigos dele, ficávamos tristes com o seu infortúnio. Resolvemos então dar-lhe dinheiro, pouco, só para ele poder pagar a pensão do filho. Entre todos arranjávamos vinte e cinco escudos todos os meses. E assim, durante mais de dois anos, em todos os meses, excepto no Agosto, lá lhe entregávamos o dinheiro, sempre até ao dia oito, que era quando ele tinha de o entregar. Como se fosse uma renda de casa.
Um dia, ainda o Inverno era uma criança, não apareceu. Às vezes acontecia, desaparecia durante dois dias ou três. Eram os pulmões, ou o estômago ou então outra mazela qualquer. Mas não voltou desta vez, e ninguém sabia o que lhe teria acontecido. Não havia notícias. Teria morrido? Esperava-se que não, coitado do homem. O tempo passou, semanas, um mês, dois, três, cinco meses, e aos poucos deixamos de falar diariamente dele. Só um dia por outro. No café havia agora um outro engraxador. A lembrança do nosso amigo, impedia-nos de gostar muito deste novo. Nem sequer era simpático.
Acabou o ano lectivo e começou outro. E do sr Adérito, nada.
Chegou Dezembro e o Natal contagiava toda a gente. Toda a gente andava com uma alegria renovada. Faltavam poucos dias para o dia vinte e cinco.
Estava o meu grupo a tomar café logo depois do almoço, numa sexta-feira com sol, quando uma sombra parou à porta de vaivém. Disse bem, uma sombra, não era mais que isso. A sombra do sr Adérito, e ele na ponta dela, na soleira. Especado, olhando para dentro do café. Estava mais magro, muito mais. As roupas, de melhor aspecto do que as que habitualmente usava, pareciam penduradas num cabide. A cara ainda mais branca, os lábios sem cor.
Já tinha passado quase um ano. Tinha chegado a nossa prenda de Natal. Sendo o Natal quando um homem quiser, também o Natal pode ser em Dezembro, como naquele ano.
Com um sorriso nos lábios dirigiu-se a nós depois dos cumprimentos da praxe aos ex-colegas do café. E falou, e falou, e falou. Que tinha estado internado, que tinha sido uma urgência, que nem tinha tido tempo de avisar fosse quem fosse, que tinha passado um mau bocado, dos pulmões pois claro, que o mudaram de sanatório para outro longe do Porto e que quando saiu, já com a saúde menos abalada, por lá ficou, numa terra vizinha, a trabalhar de engraxador e a fazer uns biscates. Que já estava melhorzinho, mas que tinha de ficar lá pelas montanhas, que o ar era bom e lhe fazia bem. Que tinha vindo ao Porto por nossa causa. Vinha devolver o dinheiro. Ganhava bem lá pela vila onde estava. Vivia com uma senhora que o ajudava bastante, e tinha de devolver o que lhe tínhamos emprestado. E puxou do dinheiro para nos dar. vinte e cinco escudos por mês vezes tantos meses, muitos. Queria pagar tudo. Que tinha de ser. Não ficava de bem com ele mesmo se assim não fosse. Qualquer dia morria e não quereria ficar com aquela dívida por liquidar.
Não era emprestado, tinha sido dado, dissemos, mas nada o conseguiu demover, e tivemos de aceitar o dinheiro.
Ao fim de duas, três horas, nem sei ao certo, tão curto me pareceu o tempo, um carro veio buscá-lo, com uma senhora ao volante. Parou à porta, com o motor a trabalhar, e lá foi ele embora, para não mais o vermos, com um sorriso nos lábios, feliz por ter cumprido o que entendia por correcto.
E nós aprendemos muito, com mais esta lição de vida, de decência e de honestidade, que nos ajudou na nossa formação como homens.
Tempos depois, houve uma revolução, e os homens como este entraram em vias de extinção.
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Passaram já tantos anos que suponho que o sr Adérito já tenha morrido, por certo que sim, por causa da doença e tudo, mas na minha memória continua ali, a engraxar uns sapatos a seguir a outros, sempre bem disposto, assobiando, contando histórias, no café da rua de Ceuta.
Que pena já não se encontrarem por aí, com facilidade, homens assim!
Não sei nem sequer imagino quem possam ser os filhos do sr Adérito. Como não sei o seu nome de família e não há a quem perguntar já que os donos do café são agora outros, nada poderei fazer, mas imagino como seria bom que eles pudessem saber desta história do pai deles.
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