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À minha direita o mar, lá ao longe, à minha frente uma parede de pedra e à minha esquerda as duas senhoras já entradas na idade terceira, que ciciavam. Sentadas uma ao lado da outra, à mesa do café, falavam em surdina dos tempos de antigamente. Em cima da mesa estavam guardanapos, uma torrada de pão de forma, uma mirita, uma meia de leite e um pingo.
O tema da conversa era a festa do São João, comparando a de agora, com a de outrora.
Na verdade pouco se entendia da conversa, apesar dos meus esforços de atenção e do meu esticar de orelhas para aquele lado, já que conseguiam falar bastante baixo.
No entanto lá pude perceber sobre que conversavam e apanhar uma ou outra ideia. Essencialmente, adoravam o Porto e a sua festa da noite de S. João, mas não gostavam de barulho, nem dos martelos, nem da música que dos altifalantes saía e que se ouvia por toda a cidade, nem do ronco das recentes vovuzelas. Também lhes fazia falta o alho e a cidreira, e os bailaricos. Sim, os bailaricos que havia, e que assumo que ainda haja, toda a santa noite, em inúmeros pontos da cidade do Porto.
Aos poucos fui deixando de as ouvir. Catalisados pela conversa que eu entreouvia, os meus pensamentos começaram a tomar conta de mim.
Vi-me na minha meninice e também no fim da minha juventude. A revolução tinha acabado de acontecer e a «liberdade» tinha chegado.
Na altura a festa do S. João estava concentrada na baixa. Os pontos principais eram a Avenida dos Aliados, Sá da Bandeira, Santa Catarina, Batalha e acima de tudo, as Fontainhas.
Era aí, nas Fontainhas que se ouvia barulho e se via o maior movimento. Mais cedo ou mais tarde da noite, todos por lá passariam. Naquela zona havia em bastante quantidade carrinhos de choque, restaurantes, cadeiras voadoras, aviões, manjericos, farturas, matraquilhos, sardinhas, alhos pôrros, carrosséis, cidreira, febras, e o mais que se possa imaginar, e em cada um dos sítios a sua própria música, tocada bem alto, para abafar a do vizinho.
Íamos para lá pelo meio da noite, os meus amigos e eu, para jogar matrecos e comer. Só gostávamos dos matrecos do Romualdo, eram os melhores ( às vezes era preciso esperar pela vez de jogar, tal era a quantidade de frequentadores). No jogo, o meu companheiro de equipa, o Zé António, jogava à frente e eu sempre à defesa. Jogávamos ao perde paga e por norma nós os dois ganhávamos. Eu até nem defendia mal, mas o Zé, era perito em fintas que conseguia executar com uma rapidez estonteante. Sabia fazer a «tolinha», o «tic-tac», o «arrasto», a «segunda linha», a «lolita» e muitas outras fintas de que me não lembra o nome. Ele mexia a mão com uma destreza e rapidez enormes e só se ouvia depois o barulho da bola a bater no fundo da baliza. Era quase impossível saber como a finta era feita. Como um certo herói de banda desenhada, era mais rápido que a própria sombra. Nos intervalos dos jogos íamos comer e comíamos o que o parco dinheiro permitia. Umas farturitas, uma ou outra cerveja ou sumo, umas febras no pão… pouco mais. Tinham de dar para a noite toda, os poucos escudos que trazíamos no bolso.
Anos mais tarde, os matraquilhos passaram para a Rotunda da Boavista, juntamente com os comes e bebes, fazendo concorrência às Fontainhas. Foi o começo da descentralização e da disseminação das festas de São João por toda a cidade. Com os matrecos e as farturas, foram para lá, também, os carrinhos de choque e os manjericos.
Antes da nossa ida para os lados das Fontainhas, já tínhamos corrido em rusgas pela Avenida e por Sá da Bandeira, já tínhamos saltado fogueiras, já tínhamos batido nas cabeças dos carecas com o alho pôrro, a parte da flor claro, ou esfregado, ao de leve, a cidreira nos narizes das mulheres e raparigas bonitas com quem nos cruzávamos. Também já tínhamos ido em direcção à Batalha, a passo de caracol, no meio de uma multidão enorme, compacta, pela rua de Santa Catarina, vindos de Sá da Bandeira e da rua Formosa, já tínhamos lançado alguns piropos e feito «olhinhos» a umas quantas meninas.
Mas mais importante do que isso, já tínhamos ido dançar durante uma hora ou duas (a noite começava com o pôr do sol). Para nós, a dança era um dos momentos altos da noite. Pedia meças ao outro grande momento, o jogo de matrecos. Num ano, ou talvez em dois, o Zé, o Silva (o meia leca do nosso grupo e que era o melhor jogador de ping-pong de entre todos nós) e eu, nem fomos jogar tão «bem» nos correu a festa. Nesses anos os outros nossos amigos não gostaram nada dessa brincadeira, já que ficaram sem alguns dos parceiros.
Havia um bailarico quase em cada bairro da cidade, quase em cada esquina da cidade. No meio da rua, num recanto entre prédios sociais, ou noutro sítio qualquer, havia música e baile, noite dentro. Apesar dos olhares atentos dos pais, namorados e maridos das moçoilas, momentos havia em que conseguíamos dançar como só no S. João se dança, com muita garra e muito desejo e sem que ninguémguém nos tenha tentado amassar os colarinhos ou termos tido a necessidade de dar corda aos sapatos para nos pirarmos dali para fora.
O meu local preferido para bailar, ficava entre prédios de um bairro junto ao Prado do Repouso. O largo formado pelos prédios, dispostos em u, com uma só entrada para a rua, era recatado e perfeito. Sempre nos correu «bem» a ida a esse baile. As pessoas eram simpáticas e dadas. Durante anos foi o nosso poiso até às badalados da meia-noite, e muitas vezes até muito mais tarde. A dada altura, já tínhamos amigas por lá. Amizades que saltavam de um ano para o seguinte, e duravam uma noite, raramente mais que isso.
No fim da noite, quase com o sol a raiar, era ver-nos em debandada do centro da cidade, com as ruas quase desertas e com as bancas dos manjericos já vazias, em direcção às praias da Foz. Sempre a pé, fazíamos muitos quilómetros nessa noite.
Não se vislumbravam transportes públicos, só um eléctrico ou outro, e o dinheiro já se tinha gasto todo. A praia do Homem do Leme era o meu destino favorito, em detrimento da minha praia de sempre, a de Gondarém, pequena de mais e com o mar mesmo em cima de nós. Anos houve em que as barracas da praia ficaram montadas com os panos durante a noite e assim pudemos ficar recolhidos e ao abrigo do relento da noite. Lá acabávamos a folia, a dormitar na areia fria, à espera do calor do sol, sem bebedeiras, com muito gozo e com nenhuma droga.
A noite do S. João do Porto sempre teve repercussões a nível social. O Santo tem milhares de filhos na cidade, tentando assim suster a diminuição de habitantes. O mês de Março será talvez o mês do ano com mais nascimentos na zona do Porto, a par com o fim de Setembro e o começo de Outubro. Até eu, imagine-se, tenho um filho nascido em Março, por certo também ele filho do S. João, mesmo nove meses certinhos após a véspera do dia da cidade.
Adoro o S. João, ou melhor, adorei o S. João quando ele se passava no centro da cidade, Aquele S. João que não tinha martelos mas tinha alho pôrro, que não tinha roulottes espalhadas por todas as zonas mas tinha cidreira e matraquilhos (os do Romualdo eram os melhores, já disse), que não estava espalhado por tudo quanto é cidade mas que tinha nas Fontaínhas o seu ponto principal, a par da Avenida dos Aliados, de Santa Catarina e da Batalha. Aquele S. João que tinha dezenas de fogueiras e centenas de balões a esvoaçar no céu (ó patego, olha o balão, gritava-se), e não tinha vovuzelas como este ano. Aquele S. João que tinha o seu fogo preso e de artifício «deitado» no dia de S. Pedro, na Afurada.
Nos últimos anos, bastantes já, tenho-me ficado por casa, ouvindo um pouco ao longe o barulho dos martelos misturado com os sons dos altifalantes. Este ano ouvindo também o horroroso som das vovuzelas.
Talvez seja da idade, esta minha vontade de não comparecer à melhor noite da cidade.
Adorava o S. João (a véspera de S. João tem um significado muito especial para mim) e se hoje ainda fosse dia 23 e a noite ainda estivesse para vir, bem que iria dar um salto à baixa, tentar reviver esses tempos (está a dar-me uma espécie de nostalgia, embora, infelizmente, com alguns dias de atraso).
Há imensas razões para se adorar esta cidade. A um bom amigo meu, FMSá, que sobre isso escreveu no blogue Albergue Espanhol, e no Aventar bem que lhe parecia que alguma coisa justificava tanto amor a esta terra e a esta gente, como por exemplo o haver tantos filhos do S.João. Essa é só mais uma de entre milhentas. E tinha razão. Seja o que for, por pequeno pormenor que seja, justifica essa paixão por esta cidade maravilhosa.
As senhoras já tinham acabado o lanche havia muito tempo. Nem tinha dado fé disso, perdido nos meus pensamentos.
Levantei-me e vim escrevinhar este texto.
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