quarta-feira, 10 de junho de 2009

COMO SE FORA UM CONTO

.

O QUE ÉRAMOS E O QUE SOMOS

.

.

Éramos pobres, ignorantes, e orgulhosamente sós, mas íamos vivendo menos mal. Havia espalhados pelo rectângulo, pelas ilhas e pelas províncias ultramarinas, os ricos, aí umas quatrocentas famílias, os pobres, para aí muitas famílias, e a classe média, a maioria. Um jornal ou um café (cimbalino), custavam um escudo.

Nos anos setenta já quase não havia quem andasse descalço, a não ser por opção, uma vez que era proibido, mas ainda havia fome. A ignorância era imensa e iletrados eram mais que muitos. Qualquer pessoa, por mais ignorante e sem estudos que fosse, arranjava emprego, de uma maneira ou de outra. A agricultura estava pujante, e as pescas, em especial a longínqua, tinham uma boa frota. Ao contrário do que se vai dizendo por aí, qualquer pessoa podia dizer o que lhe desse na real gana, desde que o fizesse no recato do lar. As autoridades lidavam mal com a crítica, e ainda pior com os insultos. Para sair do País, a maioria dos Portugueses necessitava de autorização. O escudo, moeda Portuguesa, valia mais do dobro da peseta, moeda Espanhola. Ir a Espanha era um acontecimento. Beber coca-cola, comprar alguns discos de música ou ver filmes eróticos, era impossível a não ser que se fosse ao estrangeiro. Havia livros proibidos, filmes proibidos, discos proibidos e reuniões políticas proibidas. Também era proibido ser mal-educado, desrespeitar os mais velhos, ofender o semelhante, partir vidros nas escolas, desafiar e responder desabridamente aos superiores hierárquicos, ou simplesmente não obedecer a quem se devia. Era obrigatório respeitar a hierarquia. Também era obrigatório respeitar as bichas, obedecer aos pais ou aos mais velhos, comer a sopa, pedir as coisas por favor e agradecer qualquer coisa que outrem nos fizesse. Era ainda obrigatório consumir os productos nacionais. Não havia consumismo desenfreado, comprando-se o necessário. O comércio tinha desenvoltura, e a indústria tinha clientes. Não se falava de sustentabilidade, reciclagem ou outros conceitos do género, mas a maioria, senão mesmo a totalidade das garrafas (cerveja, águas, refigerantes, iogurtes, etc.) de vidro, tinham “tara” pelo que eram reutilizadas. As crianças e os jovens iam sozinhos para a escola e para o liceu, a pé ou de transportes públicos. As ruas, os jardins e os parques, eram seguros para se passear, fosse a que hora fosse do dia ou da noite. Era obrigatório ter aulas de Religião e Moral, que a exemplo de outras como a de Educação-Fisica não contavam para nota, dadas obrigatoriamente por padres católicos, embora quem não fosse dessa religião, pudesse estar desobrigado de as frequentar. Na educação tradicional dada pelos pais, estavam incluídos uns tabefes, aplicados quando algumas asneiras eram feitas pelos putos. Só havia dois canais de televisão, que acabavam perto da meia-noite, e não se transmitiam filmes ou programas violentos. Não existiam Play Stations. As crianças brincavam na rua e era seguro. De vez em quando havia assaltos. De vez em quando havia crimes. De vez em quando havia alguém que desaparecia, descobrindo-se mais tarde, que na quase totalidade dos casos, os desaparecidos tinham ido por vontade própria. As estradas estavam arranjadas e só havia uma auto-estrada, incompleta. Nas nossas estradas morria gente. Estávamos em guerra, em África, lutando pela soberania Nacional, contra os movimentos de auto-determinação, e morria gente (menos que em acidentes nas estradas nacionais) e outros ficavam aleijados. Quando alguma alta individualidade aparecia na nossa região, se fosse do agrado das gentes, era aclamada pela população, sem reservas ou obrigações. Havendo corrupção, era pontual e pouco desenvolvida. Havia um só partido político. Os políticos eram poucos e mal remunerados. Não havia subsídios de “seja o que for”. O futebol era o ópio do povo, que assim esquecia as agruras da vida. O ordenado de um óptimo jogador de uma das melhores equipas de futebol nacional, era de cerca de dez mil escudos. Um vendedor ganharia cerca de dois, e um professor, andaria pelos sete ou oito. Havia quem mandasse e o soubesse fazer, e quem obedecesse e também o soubesse fazer. Por falta de oportunidades no País, muitos emigravam.

Entretanto aconteceu uma revolução a que chamaram dos cravos. Muita coisa mudou. Rolaram cabeças, quem mandava deixou de mandar e quem obedecia passou a ser chefe. Inverteram-se os valores. Abandonamos as colónias e a guerra acabou. Tivemos uma descolonização chamada de exemplar. Vieram então uns senhores de cabelos e barbas compridas, e disseram que estava tudo mal. Todos nós acreditamos. Era preciso mudar. Começaram por eliminar crucifixos nas salas de aula das escolas, as aulas de Religião e Moral e o respeito e obediência dados aos mais velhos. Todos os que tivessem tido algo a ver com a anterior “situação” política do País, foram perseguidos e despojados dos seus haveres. Ensinaram-nos que éramos livres e que só nós mandávamos no nosso destino. Era preciso mudar, e tudo mudou! A esperança instalou-se em todo o País. As reformas de tudo e mais alguma coisa começaram. As reformas das reformas também. E depois as reformas das reformas das reformas.

Esqueceram-se de nos ensinar que a nossa liberdade tem de terminar onde começar a liberdade do nosso semelhante. Aprendemos isso à nossa custa, mas demorou muito tempo.

Hoje, cerca de trinta e cinco anos depois, somos ricos, conhecedores, inseridos na Europa e vamos vivendo mal, e cada vez pior. Há espalhados pelo rectângulo e pelas ilhas (já não temos mais terreno, as chamadas colónias são agora independentes), os muito ricos, para aí um ou dois milhares de famílias, os ricos, aí umas quantas milhares de famílias, e os pobres e os muito pobres, a maioria. A classe média desapareceu.

Nos anos de agora, ninguém anda descalço, mas há muita gente com fome, cada vez mais. A ignorância é imensa e apesar de termos muito poucos iletrados, temos muitos calhaus com olhos, diplomados. Qualquer pessoa, por melhor curso superior que tenha, tem muita dificuldade em arranjar emprego. Os cursos médios quase desapareceram. A agricultura está de rastos, assim como as pescas. Qualquer pessoa pode dizer o que lher der na gana, desde verdades a mentiras, tanto insultos como elogios. As autoridades lidam bem com a crítica e com os insultos, muito embora o clima de medo nos postos públicos seja por demais evidente. Há de tudo no País, não havendo vontade ou necessidade de ir ao estrangeiro para os obter. As populações mais novas, são mal-educadas, desrespeitadores de toda a gente, e não reconhecem a hierarquia. Nas escolas, algumas têm vidros de chapa, pois que os de vidro já foram todos partidos. As crianças e os jovens não vão sozinhos para as escolas. Não é seguro. Quase não há productos nacionais para consumir. O comércio está pelas ruas da amargura. As falências sucedem-se umas às outras. O desemprego aumenta e atinge números inimagináveis. É obrigatório não seguir qualquer religião ou moral. Cada um faz o que lhe apetece, sem ligar aos desejos dos seus próximos. É crime dar uns açoites nos meninos. É um escândalo fazê-lo. Tal facto parece justificar plenamente o nível educativo das crianças e da juventude portuguesa de hoje em dia. Há dezenas de estações de televisão onde são passados todos os tipos de filmes e programas, mesmo os mais violentos e a horas normais, durante o dia. Os jogos de Play Station e outros, são muito violentos e os mais consumidos pela juventude. Todos os dias há assaltos, todos os dias há crimes, sendo os violentos cada vez em maior número, e crianças desaparecem, a mais das vezes contrariamente à sua vontade. Ninguém gosta de ninguém, as pessoas andam e pensam em “carneirada”. Grassa a corrupção por todo o lado e por muita gente. Há imensos partidos políticos, cada um tentando convencer o povo a dar-lhe os seus votos. Há milhares de pessoas que nunca fizeram mais nada na vida a não ser política, e vivem disso já que é muito bem paga. Há milhares de pessoas a viver de subsídios, não trabalhando. Há auto-estradas por todo o lado, até já se anda a fazer a terceira entre a capital e o Porto, e as estradas nacionais e municipais estão em muito mau estado. Continuamos a ser dos países onde mais se morre em acidentes rodoviários. O futebol aliena as mentes, e ajuda a esquecer a pobreza e a desgraça em que vivemos. Um jogador de futebol, de primeira água, ganha muitas dezenas de milhar de euros por mês, havendo alguns que ganham milhões. O ordenado mínimo anda perto dos quinhentos euros. Já ninguém sabe mandar, e pior, ninguém quer saber obedecer. Por falta de oportunidades e de emprego no País, muitos emigram. As reformas ainda não terminaram. Estamos agora nas reformas das reformas das reformas das ref…..

E o mais que se poderia dizer do tempo de antigamente e do tempo de agora.

Estamos hoje na cauda de Europa, em quase todos os sentidos. E a culpa é só nossa, se de culpa se tratar para além da ignorância e da incapacidade, das gerações nascidas entre os anos quarenta e os anos sessenta. As gerações de mandantes do país, desde há trinta e cinco anos e até aos dias de hoje.


.

(In O Primeiro de Janeiro, 10-06-2009)




.

JM

.


Sem comentários:

Enviar um comentário