quarta-feira, 28 de outubro de 2009

COMO SE FORA UM CONTO


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AS MINHAS FÉRIAS NA MONTANHA (PRIMEIRA PARTE)

Antigamente, no meu tempo de criança e de adolescente, os afortunados, como eu e meus primos, tinham férias na praia e férias no campo. Nós, os nove netos de meu avô paterno, tínhamos ainda férias na montanha. Éramos duplamente afortunados.

A praia era a de sempre, no Porto, na Foz, a praia de Gondarém. Habituei-me a ela como se fosse a minha roupa interior. Até aos dezassete ou dezoito anos, não conheci outra. Ao longo da vida, acabei por fazer praia em Matosinhos, em Leça, em vários locais do Algarve, e no Porto Santo. Mas sempre venceram, quando as comparava, as férias da praia de Gondarém.

Disso no entanto, falarei noutra altura.

As férias na praia duravam quase dois meses, às vezes mais. As férias no campo, tinham a duração de semanas, mas nunca eram seguidas. Uns dias agora, outros depois. Uma semana aqui, outra acolá. Nunca tiveram muita expressão enquanto tempo seguido e sem intervalos. Mas era tempo de qualidade, e minha avó tinha pulso de ferro para domar os netos. A educação era uma constante. A aprendizagem necessária, e sempre presente. Iamos para casa do meu avô Júlio, e por lá andávamos, no campo, no curral, na casa do forno, em casa de uns tios que também tinham um grande terreno, etc.. As brincadeiras com os meus primos arrastavam-se pelo dia todo. Foi lá que aprendi a andar de bicicleta. Fiz por lá bons amigos, de que um dia falarei. Era perto do Porto, cerca de trinta quilómetros, num planalto, e os ares eram bons. A vila, hoje uma cidade que cresceu mal, era pacata, e convidava ao descanso e ao fazer nada. Havia, ao longo das ruas, árvores. Grandes amoreiras de enormes amoras brancas e estremamente doces.

O importante, a quinzena que mais desejávamos, os nove netos, uns mais que outros claro, até pela diferença de idades (entre o mais velho e a mais nova havia treze anos de diferença), era a que, em Setembro, iríamos passar a Meneses.

Meneses é uma aldeia quase perdida no cimo do Marão, já a poucos quilómetros de Vila Real. A minha família paterna por parte da minha avó, era de lá, daquela zona. Campeã, Boavista, Gontães, Bisalhães, Paradela, Moçães, Pomarelhos, Arrabães, Torgueda, e por aí fora, num rosário de nomes de aldeias por onde andei ao longo dos anos, fizeram parte, a par com Meneses, da minha infância e da minha juventude.

Meneses era o nosso posto de comando. Lá ficavamos, em casa da sra Margarida e do sr Aurélio, criados (como se dizia na altura e sem sentido algum pejorativo) de meus avós, e ainda parentes afastados por via de um tio casado com uma irmã de minha avó, e homónimo do dono da casa. No fundo eram os nossos grandes amigos, que nos cediam a casa para passarmos dos melhores dias das nossas vidas, e ainda se atarefavam a cuidar de nós. Eram umas excelentes pessoas.

As semanas escolhidas eram duas de Setembro, que ficassem próximam do dia de aniversário do sr Aurélio. Fazíamos uma grande festa em honra dele, nessa altura, e toda a minha família paterna estava presente. Quase parecia que o almoço era em nossa honra e não dele, tal a importância que cada um dava a si mesmo. De qualquer forma, ninguém se esquecia de levar um presente, claro.

Durante os quinze dias em que por lá andávamos, felizes com a liberdade alcançada pela ausência das nossas mães e pais, fazíamos de tudo. Ou melhor, fazíamos de nada, já que só nos deixavam ver como se fazia. Víamos tratar do gado, tratar das terras, tratar das roupas, dos almoços e jantares, e também víamos como o tempo passava devagar, à velocidade dos pachorrentos bois amarelos e de grande cornadura que por lá abundavam. Como me lembro tão bem das idas diárias para o campo, com o meu grande amigo e o irmão mais novo e o pai deles. Como me recordo, como se fosse hoje, dos meus pés nús enterrados na terra molhada, feita lama, das barricas pequeninas de pôr à cinta, com vinho, e da merenda que sempre se levava, que a fome a certa altura apertava.

A VIAGEM

Naquele tempo, já lá vão umas dezenas de anos, íamos para Meneses, de camioneta. Saíamos de Paços de Ferreira, terra de meu pai e onde vivia o meu avõ, ainda a manhã estava sonolenta. Íamos no velho Anglia azul até Paredes. Por lá passava a camioneta da carreira, que vinda do Porto, iria até Vila Real. Eram quatro horas de caminho, com o tempo a aquecer cada vez mais.

Uma primeira parte do trajecto era feita até Amarante, onde se fazia uma paragem prolongada, depois das muitas paragens rápidas para entrarem e saírem pessoas, que a espaços a camioneta fazia. Nessa paragem, que fazia parte do sofrimento que era a viagem, eu aproveitava para ir visitar um amigo da praia a sua casa, o Alberto, que morava mesmo em frente ao local de paragem da carreira, e pertencia a uma família abastada da cidade. A visita era necessariamente rápida, mas servia para lembrar os dias na praia de Gondarém, que recentemente tinham acabado, e para fazer as últimas despedidas até ao verão do ano seguinte. Só nos víamos nessas alturas. Depois de acabarem as nossas idas anuais a Meneses, nunca mais o vi, nem na praia, para onde nunca mais deve ter ido. Anos mais tarde soube que a firma do pai, já não existia, devorada pela voragem dos nossos dias. Dele, nada mais soube.

Quando tínhamos sorte, nós os netos de meu avô, íamos acompanhados unicamente pela sra Margarida, de quem já falei noutra crónica. Ela, coitadinha da senhora, levava ao colo, sempre, um balde e um saco plástico, pois que ainda estaria para vir o dia em que não enjoasse com os solavancos do transporte. Quando a sorte era menor, mas mesmo assim agradável, claro, íamos também acompanhados pela única tia solteira da família. Nessas alturas tudo era mais controlado.

A segunda parte da viagem, ia começar. Mais de duas horas a subir lentamente o Marão. Curvas e mais curvas e contra-curvas. Devagar, muito devagar. E a sra Margarida a enjoar. Padronelo, Ansiães, sempre muito lentamente, com paragens sussessivas e a sra Margarida numa agonia terrível. Quando chegavamos à Campeã e à Boavista, estava já perto o fim do sofrimento, e um sorriso ia aparecendo naquela cara rechonchuda.

Nunca íamos os nove na camioneta. Os dois mais velhos, ou já não iam nessas alturas, ou já tinham permissão de irem mais tarde, de carro. Um ou outro dos restantes, num ano ou noutro faltavam à chamada. Na maior parte dos anos, éramos entre cinco e sete, os que ficávamos os quinze dias inteiros. Desde muito novo e até aos meus dezoito anos, não me lembro de ter faltado vez alguma.

Por fim lá chegávamos ao Alto da Serra. Pouco depois, numa curva da estrada, junto ao Barro Vermelho, saíamos. À nosso espera, o sr Aurélio. A seu lado, um carro de bois, ou de boi, já que a maior parte das vezes em que vinha, só trazia um. Noutros anos, não estava ninguém à nossa espera para nos ajudar, e o caminho até casa era mais penoso. Tínhamos mais uma hora, ou mais, de caminho, pelos montes, a corta mato, a caminho de Meneses. Iiiióóóó´… iiiiióóóóó … iiiiióóóó… lá íamos nós acompanhados do ruído calmo e característico do eixo de madeira do carro.

Infelizmente, o progresso acabou poucos anos depois com a hipótese de fazermos essa viagem, uma vez que alargaram e arranjaram a estrada entre Arrabães e Meneses, por onde já se podia passar de carro, e era mais fácil e curto o trajecto, mais tarde com os eixos de madeira, e dessa forma com o cantar maravilhoso que os carros faziam. E, mais tarde ainda, a ida para aquele paraíso era feita por cada um por si, ou pelos paizinhos respectivos que nos levavam. A viagem ia perdendo a graça e ganhando comodidade.

O som desses carros de bois, que ainda de madrugada e depois ao fim da tarde, ouvíamos pela serra, ainda hoje ecoa na minha cabeça, e enchem-me de saudade.

A chegada a casa era para nós um momento de glória, depois de tantas horas de caminho.

A casa da sra Margarida, como nós lhe chamáva-mos, era muito pequenina, com pouco menos de quarenta metros quadrados, e a janela de um dos quartos e a da sala estavam viradas a poente. A casa em si, debruçava-se sobre um vale. Nos primeiros anos, nem paredes interiores tinha. As divisões eram feitas por meio de cortinas, e, convenhamos, era fabuloso. Da janela da sala, lá longe, viam-se as antenas no cimo do Marão.

Depois de arrumadas as coisas e instalados e desfeitas as malas ou sacos, era a vez de ir visitar os amigos.

Um ano sem nos vermos. Tanto tempo!

(CONTINUA)


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(In O Primeiro de Janeiro, 28-10-2009)

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JFM

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