A MADRINHA NOÉMIA E O PADRINHO CARECA
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É domingo, princípio da tarde. Está calor. A rua está quase vazia. Alguns metros à minha frente, um casal passeia vagarosamente. No outro passeio, duas mulheres conversam calmamente. Dois carros passam por mim, lentamente. Ao domingo ninguém tem pressa. Excepto eu que vou com um andar ligeiro. Melhor, vou apressado. O passo estugado, marcial. Tenho de ir visitar uma pessoa que se encontra adoentada, o que faço quinzenalmente. Prometi-lhe que chegaria por volta das três, e já só faltam cinco minutos. Quase lá, abrando o andamento. Faço-o sempre. Aquela janela fascina-me. Ainda mais desde que li a crónica “A Dona Olga e eu” de Lobo Antunes, que, confesso, me inspirou.
Aquela casa faz-me reviver o passado. As lembranças de hoje levam-me para mais de trinta anos de distância.
Passo à porta daquela casa, de quinze em quinze dias. Sempre ao domingo, sempre à tarde. A porta sempre fechada, a janela sempre entreaberta. Às vezes abrando o passo e quase paro. Num dia entrevi a cama, noutro a cadeira ao lado da cómoda, noutro o guarda vestidos. A cama sempre impecavelmente feita, a cadeira sempre na mesma posição, de esguelha, e a cómoda com inúmeras fotografias emolduradas das quais se destaca, pelo tamanho, a de um homem com óculos de aros redondos, ainda jovem e careca, de fato escuro.
O quarto, sempre o vi vazio. Sem saber porquê, sempre senti que só poderia ser habitado por uma senhora. Tinha mão de mulher por ali. Até que um dia e depois outro e outro, a vi a sair de casa, mesmo à minha frente.
Hoje a janela estava mais uma vez aberta, mas mais aberta que de costume. Pude ver o crussifixo na parede por cima da cama, uma fotografia do mesmo homem em pose diferente na mesinha de cabeceira juntamente com outra em que ele e uma senhora, muito mais novos, seguravam um bébé no colo dela, um genuflexório num canto escondido por baixo de uma Nossa Senhora, e uma porta.
De todas as vezes que por lá passo, naquele rés-do-chão debruçado sobre o passeio, ponho-me a imaginar o que teria sido a vida da dona da casa.
A minha imaginação corre, livre.
Vou chamar-lhe D. Branca.
Só a vi três ou quatro vezes. Muito bem arranjada, lábios pintados de carmim, sapatos com salto pequeno e grosso, saia-casaco escuro, chapéu preto, e um olhar triste.
D. Branca, é pequenina, muito magra e de uma idade já bem avançada. Há muito terá já ultrapassado os oitenta, se calhar até mesmo os noventa. Vive sozinha. O gato que cheguei a ver por lá, uma vez ou outra, já há muito deixei de ver.
Na minha imaginação, por vezes fértil, vejo a senhora, feliz, até à altura em que o marido, funcionário fiscal, morreu, cedo de mais, de uma doença prolongada, e a filha, ainda muito jovem, partiu para terras distantes, para ganhar a vida.
Depois, uma vida recheada de recordações, e de dificuldades que nunca deu a conhecer. Uma vida sozinha e um olhar que a pouco e pouco foi esmorecendo.
O quarto é alugado e tem pela porta que desta vez vi, uma casa de banho e uma cozinha, minúsculas.
Os vizinhos conhecem-na por D. Branquinha. Todos gostam dela e não deve nada na mercearia, no talho ou na farmácia. Só sabem que é viúva de há muitos anos, que é muito calada e discreta, amiga de ajudar toda a gente, e que ninguém a visita.
A par da minha fantasia quinzenal sobre a sua vida passada, D. Branca e a sua casa pequenina, fazem-me lembrar alguma coisa ou alguém, sempre que por lá passo.
Hoje, vá-se lá saber porquê, fizeram-me lembrar a madrinha Noémia e o padrinho careca. Não eram meus padrinhos, mas todos os tratavam assim. Eram tios e padrinhos de muitos familiares e amigos.
Se fossem vivos, ela teria mais de 106 anos e ele seria um pedaço mais velho.
Eram uma presença assídua em casa de meus pais.
A madrinha Noémia, era uma mulher muito bonita, pequenina, de pele muito branca e a tender para o gordochinho.
O padrinho careca, era alto, muito magro, usava óculos de tartaruga redondos, tinha um nariz aquilino, trazia sempre um colete por baixo do casaco, camisa imaculadamente branca, gravata escura e fina e chapéu. Sempre me fez lembrar a figura de Fernando Pessoa. Também gaguejava um pouco.
Ele, que em tempos tinha trabalhado como vendedor de produtos de ourivesaria, tinha feito amizade com o meu avô que na altura trabalhava como ourives. Lá pelos anos vinte do século passado. Uma amizade que perdurou até o último deles morrer. O primeiro foi o padrinho careca, muito perto de mil novecentos e sessenta.
Ela, era vizinha de meu avô. Por lá terá conhecido o que depois foi o seu marido. Casou cedo, não teria mais de dezassete ou dezoito anos. Tiveram um amor lindo, uma vida feliz, de entrega total um ao outro.
Viviam num quarto, o único que lhes conheci, numa rua de um vale lindo. Só mais tarde vim a saber que afinal o andar era todo deles, um rés-do-chão, e que as dificuldades económicas tinham feito com que abdicassem da quase totalidade da casa, para a poderem alugar. No quarto em que viviam, sem janela, havia uma cama, duas mesinhas de cabeceira, uma cadeira e um pequeno psiché. Dois pequenos candeeiros, um de cada lado da cama, e várias fotografias em cima do pequeno toucador. Tinha uma porta para a rua e outra para o resto da casa, onde cozinhavam e usavam o quarto de banho.
Com estas lembranças todas, veio-me à cabeça um remédio, milagroso, que a madrinha Noémia usava para tratar a tosse. Como tínhamos um quintal, ela ia apanhar caracóis, grandes, misturava-os com açucar mascavado, e o sumo que ia escorrendo era filtrado num coador de pano. Depois, fazia-nos beber aquela mixórdia. Era repulsivo, mas eficaz. A tosse passava como que por encanto.
A relação dela com o padrinho careca, era calma, partilhada, feita de cedências totais de parte a parte, e de uma intimidade carinhosa. Era uma amor bonito de se ver e que fazia a inveja (no bom sentido) de muitos. Não tiveram filhos. Tiveram-se um ao outro. Os filhos, eram os sobrinhos, os afilhados e os filhos dos amigos. Pareciam dois passarinhos, aos beijinhos e aos carinhos, com olhares meigos e palavras certas.
Esta relação era transmitida a todos os outros com quem conviviam e por quem tinham uma grande amizade. Estavam sempre disponíveis para ajudar, sempre prontos a colaborar e a serem prestáveis.
Para todos ela era uma segunda mãe. Para todos ela se disponibilizava sempre.
Deles só se pode dizer que eram realmente muito boas pessoas, e um exemplo para qualquer um de nós.
Depois da morte dele, a madrinha sofreu muito a sua ausência, mas foi-a sublimando, cuidando dos amigos e da família.
Quando por fim adoeceu, e depois morreu, já lá vão mais de trinta anos, deixou uma saudade imensa que ainda hoje perdura.
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(In O Primeiro de Janeiro, 15-09-2009)
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JM
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Aquela casa faz-me reviver o passado. As lembranças de hoje levam-me para mais de trinta anos de distância.
Passo à porta daquela casa, de quinze em quinze dias. Sempre ao domingo, sempre à tarde. A porta sempre fechada, a janela sempre entreaberta. Às vezes abrando o passo e quase paro. Num dia entrevi a cama, noutro a cadeira ao lado da cómoda, noutro o guarda vestidos. A cama sempre impecavelmente feita, a cadeira sempre na mesma posição, de esguelha, e a cómoda com inúmeras fotografias emolduradas das quais se destaca, pelo tamanho, a de um homem com óculos de aros redondos, ainda jovem e careca, de fato escuro.
O quarto, sempre o vi vazio. Sem saber porquê, sempre senti que só poderia ser habitado por uma senhora. Tinha mão de mulher por ali. Até que um dia e depois outro e outro, a vi a sair de casa, mesmo à minha frente.
Hoje a janela estava mais uma vez aberta, mas mais aberta que de costume. Pude ver o crussifixo na parede por cima da cama, uma fotografia do mesmo homem em pose diferente na mesinha de cabeceira juntamente com outra em que ele e uma senhora, muito mais novos, seguravam um bébé no colo dela, um genuflexório num canto escondido por baixo de uma Nossa Senhora, e uma porta.
De todas as vezes que por lá passo, naquele rés-do-chão debruçado sobre o passeio, ponho-me a imaginar o que teria sido a vida da dona da casa.
A minha imaginação corre, livre.
Vou chamar-lhe D. Branca.
Só a vi três ou quatro vezes. Muito bem arranjada, lábios pintados de carmim, sapatos com salto pequeno e grosso, saia-casaco escuro, chapéu preto, e um olhar triste.
D. Branca, é pequenina, muito magra e de uma idade já bem avançada. Há muito terá já ultrapassado os oitenta, se calhar até mesmo os noventa. Vive sozinha. O gato que cheguei a ver por lá, uma vez ou outra, já há muito deixei de ver.
Na minha imaginação, por vezes fértil, vejo a senhora, feliz, até à altura em que o marido, funcionário fiscal, morreu, cedo de mais, de uma doença prolongada, e a filha, ainda muito jovem, partiu para terras distantes, para ganhar a vida.
Depois, uma vida recheada de recordações, e de dificuldades que nunca deu a conhecer. Uma vida sozinha e um olhar que a pouco e pouco foi esmorecendo.
O quarto é alugado e tem pela porta que desta vez vi, uma casa de banho e uma cozinha, minúsculas.
Os vizinhos conhecem-na por D. Branquinha. Todos gostam dela e não deve nada na mercearia, no talho ou na farmácia. Só sabem que é viúva de há muitos anos, que é muito calada e discreta, amiga de ajudar toda a gente, e que ninguém a visita.
A par da minha fantasia quinzenal sobre a sua vida passada, D. Branca e a sua casa pequenina, fazem-me lembrar alguma coisa ou alguém, sempre que por lá passo.
Hoje, vá-se lá saber porquê, fizeram-me lembrar a madrinha Noémia e o padrinho careca. Não eram meus padrinhos, mas todos os tratavam assim. Eram tios e padrinhos de muitos familiares e amigos.
Se fossem vivos, ela teria mais de 106 anos e ele seria um pedaço mais velho.
Eram uma presença assídua em casa de meus pais.
A madrinha Noémia, era uma mulher muito bonita, pequenina, de pele muito branca e a tender para o gordochinho.
O padrinho careca, era alto, muito magro, usava óculos de tartaruga redondos, tinha um nariz aquilino, trazia sempre um colete por baixo do casaco, camisa imaculadamente branca, gravata escura e fina e chapéu. Sempre me fez lembrar a figura de Fernando Pessoa. Também gaguejava um pouco.
Ele, que em tempos tinha trabalhado como vendedor de produtos de ourivesaria, tinha feito amizade com o meu avô que na altura trabalhava como ourives. Lá pelos anos vinte do século passado. Uma amizade que perdurou até o último deles morrer. O primeiro foi o padrinho careca, muito perto de mil novecentos e sessenta.
Ela, era vizinha de meu avô. Por lá terá conhecido o que depois foi o seu marido. Casou cedo, não teria mais de dezassete ou dezoito anos. Tiveram um amor lindo, uma vida feliz, de entrega total um ao outro.
Viviam num quarto, o único que lhes conheci, numa rua de um vale lindo. Só mais tarde vim a saber que afinal o andar era todo deles, um rés-do-chão, e que as dificuldades económicas tinham feito com que abdicassem da quase totalidade da casa, para a poderem alugar. No quarto em que viviam, sem janela, havia uma cama, duas mesinhas de cabeceira, uma cadeira e um pequeno psiché. Dois pequenos candeeiros, um de cada lado da cama, e várias fotografias em cima do pequeno toucador. Tinha uma porta para a rua e outra para o resto da casa, onde cozinhavam e usavam o quarto de banho.
Com estas lembranças todas, veio-me à cabeça um remédio, milagroso, que a madrinha Noémia usava para tratar a tosse. Como tínhamos um quintal, ela ia apanhar caracóis, grandes, misturava-os com açucar mascavado, e o sumo que ia escorrendo era filtrado num coador de pano. Depois, fazia-nos beber aquela mixórdia. Era repulsivo, mas eficaz. A tosse passava como que por encanto.
A relação dela com o padrinho careca, era calma, partilhada, feita de cedências totais de parte a parte, e de uma intimidade carinhosa. Era uma amor bonito de se ver e que fazia a inveja (no bom sentido) de muitos. Não tiveram filhos. Tiveram-se um ao outro. Os filhos, eram os sobrinhos, os afilhados e os filhos dos amigos. Pareciam dois passarinhos, aos beijinhos e aos carinhos, com olhares meigos e palavras certas.
Esta relação era transmitida a todos os outros com quem conviviam e por quem tinham uma grande amizade. Estavam sempre disponíveis para ajudar, sempre prontos a colaborar e a serem prestáveis.
Para todos ela era uma segunda mãe. Para todos ela se disponibilizava sempre.
Deles só se pode dizer que eram realmente muito boas pessoas, e um exemplo para qualquer um de nós.
Depois da morte dele, a madrinha sofreu muito a sua ausência, mas foi-a sublimando, cuidando dos amigos e da família.
Quando por fim adoeceu, e depois morreu, já lá vão mais de trinta anos, deixou uma saudade imensa que ainda hoje perdura.
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(In O Primeiro de Janeiro, 15-09-2009)
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